Durante o Estado Novo o investimento público no
interior serrano era quase inexistente e obras de vital importância para a
população, como as relacionadas com o abastecimento de água, distribuição de
luz elétrica ou a melhoria das vias de comunicação, só se conseguiam depois de
muita insistência e diplomacia junto dos organismos estatais.
Com esse fim em vista, e para apoiar o povo deixado
ao abandono, foram criadas muitas coletividades regionalistas, que tinham como
divisa estatutária, entre outros valores, “melhorar e engrandecer a sua terra”
e os seus dirigentes não se poupavam a esforços para levar por diante obras que,
de outra maneira, dificilmente se concretizariam.
Devido a essa falta de
investimento, nos anos sessenta do século passado, algumas aldeias serranas
ainda não possuíam água canalizada e Moninho, apesar de se situar junto à EN
112 e perto de Pampilhosa da serra, sede do concelho, era uma delas.
Ali, beber um simples copo de água, cozinhar, lavar
a loiça, tomar banho, dar de beber aos animais, regar as plantas e demais
utilizações domésticas, sem uma torneira por perto, era um trabalho acrescido para
os habitantes da aldeia. Em função disso, a única forma de terem água para essas
necessidades diárias era carrega-la, em cântaros e outras vasilhas, desde uma mina
que existia ao fundo de um valeiro, nas imediações do povoado, até aos seus lares. Era uma fonte que teve origem com uma escavação, a perder de vista, até às entranhas da terra, de onde brotava água com abundância, mesmo durante o verão. Ali, perto da noite, as donas de casa, depois de terminarem a labuta do campo, onde
se ocupavam na agricultura de subsistência, faziam fila para encher cântaros e outras vasilhas. Uma tarefa impensável nos dias que correm, mesmo nos lugares mais desertificados
do interior.
Ora, se não havia água para o consumo doméstico,
nem mesmo em fontanários, quando se tratava de realizar uma obra de construção
civil, à base de massas de cimento, essa tarefa era ainda mais complicada. Não existia
outra alternativa senão carregá-la utilizando os meios compatíveis com as
necessidades de consumo.
Nessa época, durante as férias grandes, André
Sargaço, que à data tinha pouco mais de doze anos, foi contratado para aquela
aldeia a fim de transportar água para uma obra onde os operários se
encarregavam do restauro de uma habitação. Queria comprar uma viola e aceitara trocar
uns dias de divertimento e convívio com os amigos,
por um trabalho que seria remunerado de acordo com os resultados. No entanto, quando
aceitara aquela função estava longe de imaginar o calvário que o esperava. Carregar
água de uma mina, que se situava ao fundo de um barroco por um trilho com
bastante inclinação, que distava do local cerca de cem metros, não
era tarefa agradável, especialmente, para uma pessoa com a sua idade.
No seu primeiro dia de trabalho, logo que se
inteirou da função de que fora incumbido, entregou-se à luta de forma dinâmica
como se um divertimento se tratasse.
Começou por carregar dois baldes, de dez litros
cada, um em cada mão, cujo líquido se destinava a ir enchendo vários bidões de
duzentos litros cada. Mas os primeiros resultados não foram animadores: a
subida era íngreme e os braços frágeis depressa começaram a ceder. Para além
disso, o desperdício de água provocado pela deslocação em terreno acidentado
era considerável. Depois de cada descarga, André Sargaço olhava para o bidão e ao
notar que o nível quase não se alterava ficava um pouco desalentado. Mas, logo
a seguir, caminhava mais depressa ao encontro de novo carregamento para tentar
mostrar serviço e não por em causa a sua capacidade.
Ao fim de várias deslocações à fonte, concluiu
que tinha que arranjar outra forma de transporte menos cansativa e com menor
desperdício. Então, pensou em utilizar dois regadores em zinco que eram,
parcialmente, protegidos com tampa. Sim, essa parecia ser uma forma de poder caminhar
mais depressa e não entornar parte da água. Solução que, embora não fosse a
ideal, lhe parecia ser a mais adequada àquele serviço. Com essa ideia em mente,
o seu trabalho foi continuando cada vez com maior dificuldade e com paragens mais
frequentes para aliviar os braços que não estavam familiarizados com um esforço
tão prolongado.
Enquanto aguardava pela chegada das vasilhas
que solicitara e se ia movimentando naquele vai e vem extenuante, pensava nos
amigos que, certamente, àquela hora, se encaminhavam para o Poço Escuro para os
habituais mergulhos e pescarias. Coisa que, para ele, apesar do calor que se
fazia sentir, agora, estava vedado. Logo a seguir, veio-lhe à mente uma
história que ouvira a um antigo militar sobre o Forte da Graça em Elvas, para
onde aquele fora atirado por motivo de castigo. Segundo contava, os
prisioneiros, ali, eram obrigados a carregar um barril meio-cheio de água desde
a fonte, no sopé da montanha, até ao Forte situado la bem no topo, e André Sargaço imaginou
o sacrifício que aqueles fariam.
A meio da tarde todo o corpito lhe doía. Como
se isso já não fosse suficiente o calor sufocante ainda veio agravar a
situação. Para além dos braços também as pernas não queriam colaborar no esforço.
Nem mesmo as palavras de incentivo que lhe chegavam das pessoas com quem se
encontrava no trajeto lhe davam alento. Embora lhe apetecesse desistir não o podia
fazer, por uma questão de princípio, perante o compromisso que assumira.
No meio daquela azáfama, André Sargaço foi
incumbido de se deslocar à taberna, que se situava junto à EN 112, a cerca de
duzentos metros da obra, para ir buscar uma mistura de bebidas a que chamavam
cervejão. Conforme acordaram, dessa vez, seria constituída por cerveja, gasosa e
vinho branco. Uma espécie de refresco, pese embora algum teor alcoólico, que permitia aos trabalhadores ingerir maior quantidade sem se sentirem afetados
pela bebida. Então, assim que foi delegado naquele recado sentiu-se aliviado e
meteu-se a caminho sem grande pressa porque enquanto tratava daquele assunto folgava
os braços e se a água, entretanto, acabasse já tinha uma justificação. Ainda
assim, levava na bagagem uma recomendação para que se apressasse no regresso
para o refresco não aquecer.
Assim que chegou à taberna, local onde os
trabalhadores se reuniam no final da jorna para tomar uma bebida antes de seguirem aos
seus destinos, entregou o garrafão, de cinco litros, ao taberneiro, com a
indicação da quantidade e da mistura que pretendia. Aquele que, algumas vezes,
bebia em parceria com os clientes, não perdeu tempo e, como se procurasse o
melhor vinho para servir bem os fregueses, abriu um garrafão que escolheu entre
o amontoado que tinha junto ao balcão, encheu um copo e saboreou uma golada, depois
de analisar o néctar esboçou um esgar de satisfação e disse:
-
Oh rapaz!? Diz ao teu patrão que este vinho é
do melhor que há cá na Serra! Portanto, desta vez, não aceito reclamações!
Seguidamente,
entregou-se à preparação da mistura adicionando os ingredientes solicitados. Assim
que terminou e de acordo com a indicação que, inicialmente, recebera do encarregado
da obra, anotou a despesa no livro de registo dos débitos ou livro dos calotes
como ele gostava de dizer. E logo a seguir, levou o copo à boca, bebeu o resto
vinho e dando ênfase à sua especialidade de enólogo, comentou:
-
É uma pena misturar vinho desta qualidade com
outras zurrapas! Querem boa qualidade e depois estragam tudo: vinho, gasosa e
cerveja! – e concluiu: - Não te demores rapaz! Que, com este calor, o cervejão
aquece depressa!
Embora não precisasse de recomendações, André
Sargaço partiu sem responder ao taberneiro que, por sinal, lhe pareceu já um
pouco tocado. Logo que atravessou a EN e entrou no carreiro de atalho à via
principal, ladeado pelo emaranhado de acácias mimosas, não resistiu. A sede era
muita e resolveu molhar a boca seca. Levantou o garrafão, provou e bebeu uma
golada, depois outra bastante mais prolongada até se achar satisfeito e logo a
seguir, partiu em passo rasgado ao encontro dos operários que aguardavam o
refresco com ansiedade. Enquanto se deslocava, concluiu que era a primeira vez
que bebia cervejão e ficou agradavelmente surpreendido dado que lhe soubera
melhor que o vinho tinto que, por vezes, provava na adega do seu pai.
Assim que chegou à obra, depois de servir um
copo a cada trabalhador, não se fez rogado, bebeu também a sua parte e logo a
seguir voltou à via-sacra que lhe fora reservada. Decorridos alguns minutos, tudo
se modificou para melhor: os baldes ficaram mais leves e as pernas deixaram de
reclamar. Apesar do calor que se fazia sentir, descia e subia a rampa em marcha
mais rápida e assim continuou, com o mesmo empenho, até ao fim da jornada.
Na madrugada seguinte acordou mal disposto só
que não teria sido pela quantidade da bebida, mas pelo facto de não estar
habituado a ingerir bebidas alcoólicas. Quando regressava ao trabalho, ainda
enjoado, prometeu, a si próprio, não repetir a experiência. Promessa que não
viria a cumprir atendendo a que passou a ir à taberna duas vezes por dia e o
calor não dava tréguas.
Logo que chegou à obra, já na presença dos
regadores, muniu-se de um pequeno pau para servir de canga à qual, em cada
extremidade, juntou um gancho em ferro para pendurar as novas vasilhas. Assim,
o peso já recaía sobre as costas e não nos braços como acontecera na véspera.
Nos primeiros carregamentos tudo lhe pareceu mais facilitado: andava mais
rápido e não tinha desperdício de água, mas com o passar do tempo o cansaço e a
saturação acabariam por se manifestar.
Naquele tempo, na região serrana, o movimento
rodoviário era muito reduzido e a passagem de qualquer viatura pela EN despertava
a curiosidade dos residentes que, por vezes, atendendo ao tipo de veículo, até
davam palpites sobre o nome do condutor e proprietário em causa. Talvez por
isso, a meio da tarde, quando André Sargaço se deslocava para a taberna, a fim
de se ocupar de mais um refresco, ouviu o som de uma buzina e parou para observar o que
se passava quando reparou que aquela se limitava a anunciar a aproximação de um
ciclista que se deslocava no sentido Valongo – Moninho. Tratava-se de um
cantoneiro que, depois de terminar o seu período de trabalho, se fazia anunciar
numa algazarra interminável provocada por uma buzina manual que adaptara à
bicicleta. Como diariamente acontecia, tinha paragem obrigatória na taberna onde,
repunha os níveis de líquidos, conversava e, quando era provocado, fazia questão de se
empenhar na defesa à sua classe. Quando era confrontado
com críticas à falta de produtividade dos cantoneiros, que há época eram
habituais, para além de contrariar esse ponto de vista, não se cansava de
realçar a dureza do seu trabalho enfrentando os humores da natureza, tanto no
verão como no inverno.
Naquele dia, o cantoneiro não perdeu tempo. Quando
André Sargaço chegou à taberna já aquele segurava um copo de tinto e falava da
sua jornada de trabalho que decorrera debaixo de um sol escaldante na zona do
Valongo. Valongo era a área do seu Cantão (área de trabalho que lhe estava
destinada) onde lamentava não existirem sombras para se abrigar do sol
escaldante nem água fresca para matar a sede.
Para André Sargaço o quotidiano foi decorrendo
sem grandes alterações, mas ao fim de duas semanas deixou o trabalho, recebeu o
ordenado e foi gozar as merecidas férias.
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