sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA ROTA DO OCASO


Naquele dia, Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor, por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade. Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso, logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento, como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que, naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa, passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas, sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa, concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso, entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia. Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso encontrava facilmente solução.
Com o afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo seria o seu melhor aliado.




sexta-feira, 11 de julho de 2014

O VIVER SERRANO NO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX




"Com a chegada da recessão em 1930, as dificuldades agravaram-se e as populações, já anteriormente carenciadas, ainda ficaram mais fragilizadas. Desde o princípio do século que a instabilidade política era a causa apontada para o grande colapso em que viviam as comunidades rurais em Portugal. Agora, para esta agonia económica, teria contribuído essencialmente a crise a nível mundial, como reflexo ainda da Primeira Grande Guerra que doze anos depois, teimava em semear dramas.
Para tentarem fugir à penúria que não parava de os molestar, todos os homens válidos, mas sem pão no açafate, cujo passadio se limitava a um caldo de couves, boiando sem condimentos por o azeite se destinar à candeia fumarenta, com um pouco de broa migada para que o seu bolor se desvanecesse, todos eles olhavam para o horizonte com alguma esperança, sobretudo em época de ceifas, nas grandes planícies do Alentejo ou na província de Badajoz em Espanha."
In Madrugadas de Esperança.




sexta-feira, 4 de julho de 2014

A FONTE MILAGROSA


Naquela manhã de maio, João Nabiça decidiu experimentar a potência do seu novo jeep numa viagem pela serra risonha onde para além do prazer da condução queria saborear a beleza da paisagem. Para além do passeio e do contacto com a natureza, queria, ainda, verificar a resistência da viatura, face à aridez do terreno, numa das diversas vias florestais de acesso à barragem de Santa Luzia. Tratava-se de um período do ano em que os montes serranos se revestiam de um colorido matizado deslumbrante que deleitava o olhar até do mais distraído passante.
A esposa que, nesse dia, não quisera experimentar a viatura para se furtar à constante censura do marido, relativa à sua condução, ia sentada a seu lado contemplando o rendilhado florido que cobria os montes quase no seu auge. Durante todo o percurso de ida, ambos conviviam com toda aquela beleza natural como se visitassem a região serrana pela primeira vez. Passaram ali noutras ocasiões, mas nunca se haviam apercebido de que a paisagem fosse tão arrebatadora, motivo que os forçou a paragens frequentes para o inevitável registo fotográfico.
Depois de um percurso térreo de grande inclinação em que João Nabiça aproveitou para fazer diversos testes ao veículo que, apesar do elevado grau de dificuldade, correspondeu às suas expetativas, chegaram ao Casal da Lapa. Assim, logo que Nabiça estacionou o carro decidiram percorrer o circuito da pista pedestre, construída junto à albufeira da barragem de Santa Luzia, exercitando as pernas e sorvendo o ar puro daquele lugar retemperador.  
Logo que o apetite os despertou para o almoço encaminharam-se para Fajão, uma aldeia de xisto de grandes tradições que, para além do património histórico de visita quase obrigatória, lhes reservava uma refeição como há muito não comiam. Depois das entradas de queijo de cabra curado e doce de chila, optaram por uma emanta de cabrito assado, guarnecido com batata alourada e castanha pilada, acompanhado com um bom tinto. No final, após se terem deliciado com uma sobremesa de tigelada na púcara, Nabiça rematou com um digestivo de aguardente medronheira. Uma iguaria, para auxiliar a digestão, de sabor ligeiramente adamado e aroma inconfundível, produzida na região serrana por gente experiente no fabrico artesanal.  
Quando se encaminhavam para a viatura, Nabiça notou que tinha exagerado nas bebidas alcoólicas. Não estava bêbedo, mas já se sentia um pouco tocado ao ponto de notar pequenas alterações de coordenação motora. Apesar disso, não comentou o assunto com a esposa para não a motivar a pegar no volante. Até porque ela também tinha bebido, embora em menor quantidade. Ao mesmo tempo, ele não tinha muita confiança na sua condução, especialmente, naquela zona montanhosa onde os precipícios se sucediam em cada curva da estrada que ao mínimo descuido poderiam originar um despiste com consequências imprevisíveis. Assim, sentou-se ao volante consciente do seu estado que julgava não ser impeditivo de guiar. De qualquer forma, tinha a noção de que naquela região o trânsito era bastante reduzido e também não era habitual ser confrontado com qualquer ação de fiscalização. Então, iniciou a viagem de regresso à Lousã, em marcha muito cautelosa para tentar minimizar qualquer imprevisto. No entanto, enquanto subia a serra, para uma altitude superior a mil metros e onde a pressão atmosférica já é notória, foi acometido de forte sonolência, mas, apesar disso, foi progredindo tentando contrariar o descanso que organismo lhe pedia.
Entretanto, para obedecer a uma necessidade fisiológica, foi forçado a interromper a marcha no momento em que circulava próximo do cimo da catraia do Farropo. Antes de reiniciar a viagem ficou a saborear a brisa fresca que soprava de norte, tentando, com isso, espantar a sonolência que o atormentava. Vento era coisa que não faltava por ali em qualquer época do ano. No dorso daquelas serranias era utilizado como força propulsora para produção de energia.
Enquanto se movimentava, na berma da estrada, apercebeu-se da existência de uma nascente contígua à via que brotava da fenda de uma rocha em caudal abundante. Como se o cantarolar da corrente lhe tivesse despertado o apetite, desceu o pequeno valeiro, encheu uma garrafa que ali encontrou e bebeu em pequenos goles. Minutos depois repetiu o enchimento e convidou a esposa para que lhe fizesse companhia, mas como aquela declinou ele esvaziou a garrafa sozinho saboreando a frescura e a leveza da água em lentos tragos.
Entretanto, o tempo foi passando e, meia hora mais tarde, notou que a sua disposição melhorara nitidamente. A sonolência e a perturbação visual tinham desaparecido. Em função disso, retomou a marcha, aparentemente, consciente para o exercício da condução.
Porém, quando se aproximava do entroncamento da Catraia da Martinha, lobrigou, por entre a ramagem dos pinheiros, a presença de uma força policial que se encontrava a menos de duzentos metros à sua frente. Ao ver os agentes, Nabiça estremeceu e interrompeu bruscamente a marcha com uma travagem que embora não tivesse sido ruidosa despertou a atenção da fiscalização.
De facto, estava longe de imaginar que, naquele local, em plena serra, iria ser surpreendido por uma operação de stop. Precisamente no dia em que tinha ingerido um copito a mais, uma situação que só muito esporadicamente acontecia. No mesmo instante, sentiu-se invadido por um misto de emoções contraditórias: se por um lado se recriminava por não ter tido cuidado suficiente com a bebida, por outro, insurgia-se contra a presença dos agentes de autoridade logo num local que não lhe deixava alternativa de desvio. Pensou em trocar de lugar com a esposa, mas, ao mesmo tempo, descartou a ideia dado que, certamente, os agentes iriam notar. Ao mesmo tempo, equacionava uma forma de se desenvencilhar da situação em que estava metido, talvez, invertendo o sentido de marcha para se por em fuga. Tinha uma viatura apropriada para circular por qualquer estrada florestal, onde não seria facilmente alcançado, mas corria o risco de vir a ser confundido com um vulgar criminoso, coisa que nem sequer podia imaginar que lhe acontecesse. Considerava-se uma pessoa responsável e, como tal, a sua única solução, seria assumir as consequências que pudessem resultar da fiscalização. Nos poucos segundos que mediaram a sua reflexão tudo isso lhe passou pela mente. Mas, de repente, lembrou-se de que não tinha averbado qualquer infração no seu cadastro de condutor e decidiu prosseguir o caminho na expectativa de que isso lhe servisse de atenuante.
Então, como tanto receara, mal entrou na Estrada Nacional 112, foi logo intercetado pelos agentes de autoridade. Ao ser questionado se havia ingerido bebidas alcoólicas respondeu com realismo. Não valia apena mentir até porque o aparelho não se deixaria, obviamente, iludir pela sua negação. Porém, a sua ansiedade era de tal modo que, depois de sopro, ficou com os olhos vidrados no aparelho como se esperasse algo muito decisivo na sua vida de condutor. Mas o resultado surgiria quase de imediato, com a indicação de 0,35 g/l. Um resultado perfeitamente dentro dos limites legais para poder exercer a condução. Nabiça nem queria acreditar naquilo que ouvia da boca do agente, quando aquele lhe deu conta do resultado.
Só depois de ter sido autorizado a continuar a viagem, comentou com a esposa não só o mau bocado que passara provocado pelos efeitos do excesso de bebida como, ainda, o susto que apanhara no ato da fiscalização. Ao mesmo tempo, não se cansava de fazer conjeturas sobre o resultado do teste e só encontrou uma explicação razoável - as excelentes propriedades da água que tinha ingerido. De facto, logo que a primeira golada deslizou pela garganta, notou uma reação quase imediata que lhe trouxe a boa disposição, razão que julgava suficiente para acreditar naquilo que lhe acontecera.
No dia seguinte, João Nabiça mandou fabricar uma placa metálica com a inscrição seguinte: “Fonte Milagrosa”. Não tardou em arranjar uma oportunidade para voltar à serra e colocar a placa, junto à fonte, bem à vista de qualquer transeunte, como se com esse gesto fizesse um agradecimento à generosidade da natureza pela pureza daquela nascente.  
Dois meses mais tarde, por motivos desconhecidos, a placa com a indicação da "Fonte Milagrosa" viria a desaparecer. 




sexta-feira, 13 de junho de 2014

UM ALMOÇO INESQUECÍVEL



Logo que Norberto Vidreiro e o jovem Vicente chegaram à povoação da Várzea encaminharam-se para a tasca que era o único estabelecimento que servia refeições num raio de vinte quilómetros. Embora nunca lá tivessem entrado, tinham boas referências sobre a qualidade da comida ali confecionada. Apenas um senão, a variedade de pratos estava limitada ao chamado “prato do dia”, a menos que o menu fosse previamente encomendado. De qualquer modo, os dois homens não estavam preocupados com isso, queriam matar a fome fosse qual fosse a ementa.
Para eles a manhã fora longa e atribulada. Levantaram-se cedo a caminho de um lugar que distava das suas residências perto de cem quilómetros. Ali, esperava-os trabalho árduo a braços com a colocação de vidros num edifício em construção. Durante a viagem tiveram uma avaria no veículo que lhes roubou quatro horas de labuta e nem sequer lhes permitiu a ingestão do pequeno-almoço. Motivo suficiente para que nesse dia se sentissem mais esfaimados do que nunca.
O Vidreiro era um antigo atleta na disciplina do lançamento do peso que, depois de alguns anos de entrega à prática desportiva, se dedicava, agora, em exclusivo à sua profissão de vidreiro. Era um homem com cinquenta anos de idade, bem humorado e robusto, que gostava de se alimentar bem. O Vicente era seu empregado. Tinha dezoito anos e nunca lhe faltava o apetite.
Logo que chegaram ao tasco, sentaram-se à mesa e pediram duas doses de jardineira que era a ementa do dia. Mas assim que o tasqueiro colocou as travessas em cima da mesa o Vidreiro olhou-o nos olhos e disse:
-    Olhe que nós pedimos duas doses!
-   Exatamente, estão à sua frente! – respondeu o tasqueiro, também um homem robusto, mas ligeiramente mais velho.
-   Tenho almoçado em muitos locais pelo país e não só, mas nunca me serviram uma dose tão pobre! O senhor acha que isto é refeição suficiente para um homem de trabalho? – insistiu Norberto Vidreiro de plena voz.
-  Se quiser mais peça outra dose! Não se acanhe! A panela está cheia! – respondeu o sexagenário, com cara de quem esperava a visita dos funcionários do fisco.
- Não, obrigado! Para pagar outra dose é preferível fazer a viagem de vinte quilómetros e almoçar num restaurante digno desse nome! – respondeu o Vidreiro, sem alterar o tom de voz.
Ao fim de duas dúzias de garfadas, ambos ficaram com os pratos vazios. O Vidreiro ainda esteve tentado a pedir outra dose para o colaborador, que era jovem e tinha necessidade de se alimentar bem, mas acabaria por desistir depois de ouvir a recusa daquele. Ambos concordaram num jantar reforçado, aquando de regresso às suas residências.
Mas, a meio da tarde, a fome voltou para ensombrar a habitual boa disposição dos dois homens e Vidreiro não se ficou pelas intenções, ordenou ao jovem que fosse comprar qualquer coisa para o lanche. Em função disso, quando o Vicente se dirigiu ao tasqueiro e pediu duas sandes, aquele disse:
-   Muito bem! Enquanto eu as preparo, vá perguntar ao seu patrão se amanhã cá vêm almoçar e diga-lhe que a ementa vai ser favas.
-    Eu não gosto de favas. – atalhou o Vicente.
-    Não faz mal, para si preparo um bife com batatas fritas!
A resposta não tardou muito e foi afirmativa. Norberto Vidreiro adorava favas e decidiu repetir a experiência antes de optar por uma alternativa.
Assim, no dia seguinte, sensivelmente à mesma hora, os dois homens sentaram-se à mesa preparados para satisfazer o apetite, nem que, para isso, tivessem que pedir doses reforçadas. Depois de alguns minutos de espera, o tasqueiro, conforme havia acordado, colocou à frente do jovem um bife de novilho que enchia totalmente o prato e à frente de Vidreiro um tabuleiro a abarrotar de favas. Estavam tão bem empilhadas que, no meio, formavam uma torre em forma de pirâmide. Pelo volume devia rondar dois quilos.
- Para quem é este vagão de favas? – questionou Vidreiro, que parecia impressionado com o que via.
-  Para o homem de trabalho que está sentado a essa mesa! Não quero que ele repita aquilo que disse ontem! E como se não bastasse a reclamação, pronunciou-se em tom audível a outros clientes, pondo em causa o bom nome desta casa, fruto do trabalho de duas gerações. – respondeu o tasqueiro, com ar de quem julgava ter ganho a causa.
-   Muito bem! Então, traga um jarro de vinho de litro!
Só depois do sexagenário se afastar é que Vidreiro tomou consciência do sarilho em que estava metido. Conhecia a sua capacidade gastronómica, mas nunca se vira perante uma situação que tinha tudo para ser um desafio provocador. Embora fosse um homem de trato austero sabia dar o braço a torcer quando a situação o exigia, mas, naquele caso, decidiu enfrentar a refeição como se travasse uma batalha com o tasqueiro que o serviu, personalizada na montanha de favas. Não podia permitir que aquele se divertisse à sua custa.
Depois de várias dezenas de garfadas e um quarto de hora a comer a pirâmide parecia ainda maior, mas o Vidreiro estava determinado a concluir a refeição a que se propusera. Pelo canto do olho, notava que o tasqueiro o tinha sob observação em conluio com alguns comparsas que se apinhavam ao longo do balcão, mas não dava qualquer importância aos olhares indiscretos. A determinada altura levantou o braço e o sexagenário correu na sua direção como se esperasse o anúncio de tréguas. Contudo, a batalha ainda estava longe do fim. Contentou-se com o pedido de outro jarro de vinho.
Alheio à guerra das favas, estava o jovem que, enquanto almoçava, olhava o patrão com o ar divertido de quem nunca assistira a semelhante façanha.
Apesar de totalmente enfartado, o Vidreiro continuou a lenta degustação para que as favas se fossem acomodando o melhor possível. Não tinha pressa. O trabalho podia esperar. Era patrão de si próprio, não tinha que dar contas a ninguém.
Uma hora mais tarde, o tasqueiro não resistiu a uma provocação. Abeirou-se da mesa e questionou:
-     Então! Gosta das favas?
-     Muito! – respondeu o Vidreiro.
-     São do meu quintal!
-    Olhe! Para lhe ser franco, acho-as bem confecionadas! No entanto, se não me leva a mal, gostaria de fazer um pequeno reparo:
-    Fale à vontade, homem!
-   Acho que a cozinheira se excedeu no tempero! Tem piripiri a mais! Mas para isso também o senhor arranja solução! Traga-me mais um jarro de vinho! Tenho a boca a escaldar!
-    Meu amigo! Não seja por isso! A pipa está cheia! Pode beber à vontade! – disse o tasqueiro engolindo em seco a resposta que não esperava. Logo que chegou atrás do balcão, encheu o jarro e trocou palavras em surdina com uma senhora que estava junto a si que logo a seguir foi entregar o vinho que ele acabara de encher.
Depois de quase duas horas, surgiu aquilo que o tasqueiro nunca imaginara. O tabuleiro estava limpo e o jarro vazio. Vidreiro vencera o primeiro combate. O segundo estava reservado para a digestão de todo aquele excesso de comida e bebida.
Logo a seguir, mal o Vidreiro terminou a refeição, o sexagenário abeirou-se da mesa e em tom provocatório, questionou:
-     E, agora, vai desejar sobremesa?
-     Depende do que tiver!
-     Hoje, só temos mousse de chocolate! – respondeu o tasqueiro.
-    Nesse caso fica sem efeito! Não me dou bem com os doces! Traga-me apenas o café e um bagaço bem cheio. Entretanto, pode fazer a conta que ainda tenho meio-dia de trabalho pela frente.
-   Caro amigo! As contas estão feitas! Hoje, é por conta da casa! Dou-lhes os parabéns! Se de facto for tão bom a trabalhar como é a comer não há obra que lhe resista.
-    Pode crer! Mas eu faço questão de pagar a minha despesa. – insistiu o Vidreiro.
-    Como já lhe disse, hoje a despesa é por minha conta!
-   Nesse caso, obrigado! Mas estava longe de imaginar de que iria comer um almoço à borla. Ah!... Quando voltar a servir favas não se esqueça de me avisar! – disse o Vidreiro no momento da despedida, perante o ar desalentado não só do tasqueiro como, também, dos comparsas que o rodeavam. 
Só quando se levantou é que Vidreiro tomou a verdadeira consciência do exagero em que se metera. A barriga estava a abarrotar e as pernas teimavam em não lhe obedecer. Mas ele era resistente e estava mentalizado para as dificuldades que o esperavam. Não estava em condições de trabalhar, mas também não podia estar parado. O movimento era essencial para fazer a digestão. Assim, por via disso, o resto do dia, não parou de caminhar ao longo de uma artéria secundária para não dar a entender o seu transtorno digestivo. Mas o exagero tinha sido grande e não havia forma de se livrar daquele enfartamento. A barrigada fora de tal ordem que se prolongou até ao meio da tarde do dia seguinte, apesar de não mais ter comido nem bebido.