Naquele dia,
Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou
de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se
por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor,
por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade.
Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava
de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um
certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás
iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a
intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a
contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso,
logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca
que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o
passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era
impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando
com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque
ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento,
como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser
verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua
vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom
porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra
consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão
pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão
anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico
condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E
agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que,
naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término
do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de
regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável
tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do
campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou
indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a
primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar
as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e
fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na
poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam
traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória
alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois
anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não
passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza
quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por
recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua
opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só
porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda
entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a
pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à
chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos
presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS
que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de
público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar
que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma
detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito
libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos
seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua
função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao
passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa,
passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto
ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que
revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse
reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também
a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no
estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais
desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha
parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito
do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o
Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era
requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha
pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde
aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em
área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca
perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio
com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da
guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a
toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas,
sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois
do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar
para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de
vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão
arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente
pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao
apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo
instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do
rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa,
concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo
um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar
impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som
da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua
juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era
familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara
por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe
faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse
dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de
despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado
qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso,
entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como
imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A
saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia.
Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade
estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com
irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas
vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso
encontrava facilmente solução.
Com o
afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus
dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida
profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos
que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem
dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver
com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria
apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo
seria o seu melhor aliado.