domingo, 31 de janeiro de 2021

VIDA ADIADA

 Em janeiro de 1961, depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório, que à data não ia além de seis meses, três de recruta e três de especialidade, Luís Rambóia regressou à Povoação da Portela, localidade de onde nunca havia saído até ser chamado à tropa.

Enquanto permaneceu na aldeia onde nascera, nunca laborara por conta de outrem devido à escassez de postos de trabalho por toda a região. E quando algum aparecia era, apenas, para ao abate de pinheiros e processamento da madeira. Uma forma de ganhar a vida com que ele não se identificava porque, para além de perigosa e muito esforçada, era mal remunerada. Em função disso, Luís Rambóia sempre rejeitara as propostas de trabalho, feitas por madeireiros, por discordar dos baixos salários que aqueles se propunham pagar. Em contrapartida, auxiliava os seus progenitores no pastoreio de um pequeno rebanho de caprinos e em algumas tarefas agrícolas. Começava a manhã a ajudar a mãe na ordenha das cabras que, no final do dia anterior, deixara no aprisco. Depois, soltava o gado para que se alimentasse, livremente, por montes e vales em pousio. Ainda assim, não perdia o rebanho vista, para evitar que invadisse propriedades de cultivo, vinhedos, pomares, alfobres e hortas. Durante a época das sementeiras, também se ocupava no amanho de duas courelas que funcionavam no apoio do sustento familiar. Uma ocupação onde nunca se esforçara, mas que também não lhe dera o necessário para viver. À mesa, a comida nem sempre abundava, mas agora vinha mentalizado para lutar por uma vida mais desafogada.

Habituado à vida libertina que levara na aldeia, ao ser chamado a cumprir o seu dever militar, tivera alguma dificuldade em se adaptar à instrução de recruta e às regras disciplinares. Discordava das normas do RDM que, na redação dos seus artigos, só lhe impunha deveres. Durante a instrução e após leitura atenta concluíra que os direitos dos soldados não eram contemplados naquele regulamento. Todavia, quando percebeu de que não tinha outra alternativa senão cumprir o que lhe era exigido, acabaria, ainda, por colher bons princípios para a sua formação de homem. Paralelamente a isso, também aprendera de que nunca seria tarde demais para tentar melhorar a sua vida e que só enfrentando as adversidades o poderia conseguir.

Assim, movido por alguns valores da escola militar, logo que regressou ao seio familiar decidiu dedicar-se ao trabalho, com entusiasmo, mas como não tinha grande escolha optou pela profissão de resineiro. Um trabalho bastante exigente, mas que, à data, estava a ser bem remunerado devido ao aumento da procura dos derivados da resina a nível internacional. Então, apressou-se a fazer uma parceria com o proprietário de uma fábrica resineira que lhe viria a fornecer o equipamento necessário para começar a renova das sangrias que, normalmente, se iniciava em março. Assim, para ele, tudo parecia estar a começar bem, no entanto, quando menos esperava, o rumo da história do país viria a modificar também o curso da sua vida.

Na época, na região, os camponeses digladiavam-se em busca de uma paveia de mato para estrume e empalho dos milheirais. A procura era tão grande que nem dava tempo a que, urzes e carquejas, crescessem o suficiente para roçar. Para além do corte constante, tinham um desenvolvimento lento provocado pelos de rebanhos de caprinos que se alimentarem dos viços atrasando assim a medrança. Devido a toda essa busca, as florestas ficavam devidamente limpas e os incêndios só muito esporadicamente ocorriam. Ainda assim, quando tal acontecia, eram rapidamente debelados devido à falta de combustível. O corte frequente dos matos permitia a existência de vastas áreas de pinheiro-bravo com crescimento ideal para a exploração de madeira e resina. Indústrias que, na época, eram as únicas empregadoras em todo o interior serrano.

Embora dotado de uma imaginação fértil, Luís Rambóia era bastante limitado para as letras. Foram necessários seis anos para concluir a instrução primária e, ainda assim, contara com a boa vontade do professor que, paralelamente aos castigos que lhe aplicara, tudo fizera para o ajudar a concluir a quarta classe. Em contrapartida, era fisicamente robusto e, aparentemente, talhado para o trabalho braçal, embora antes do serviço militar nunca tivesse dado prova disso. Vivera sempre, num quotidiano de sem preocupações de maior, na esperança de que, por obra e graça, as suas condições de vida melhorassem.

Naquele tempo, na aldeia, num ritual que já se perdia no tempo, depois da missa dominical, os populares reuniam-se a porta da capela onde participavam no leilão de oferendas em favor do Santo Padroeiro. As ofertas resultavam de promessas feitas ao Santo em prol de determinados pedidos que queriam ver realizados. Normalmente, as dádivas materializavam-se nos diversos produtos endógenos, como derivados da matança do porco, agrícolas e destilados.

De acordo com essa tradição, em março, desse mesmo ano de 1961, depois da arrematação de duas chouriças e de uma garrafa de aguardente, algumas pessoas abandonaram a reunião, outras continuaram, por ali como habitualmente, a trocar impressões sobre os mais variados temas pois, devido à vida rude que eram forçados a enfrentar, só ao domingo tinham disponibilidade para dialogar, divertir e até confraternizar.

Então, o recém-chegado militar, que raramente faltava às celebrações religiosas, aproveitando o dia de descanso e a presença de dois jovens que brevemente iriam entrar nas sortes, lembrou-se de fantasiar as peripécias por que passara na tropa, como se de um herói se tratasse. Logo que achou que as condições estavam reunidas deu início às suas estórias, com tal convicção que os jovens interessados em saber o que os esperaria num futuro próximo ficavam impressionados com tais relatos.  

Na realidade, nenhuma dessas façanhas, que Rambóia arengava, correspondia à verdade. A sua passagem pela vida militar fora de curta duração e nem sequer fora escolhido para uma qualquer especialidade. Para além de lições de ordem unida, onde mal aprendera a marchar e a manejar uma espingarda, enquanto soldado pronto, não apanhara castigos, mas também nada fizera de relevante. Apesar de ter obtido boa pontuação no exercício de tiro, talvez por desinteresse da formação nessa área, nem tão pouco chegara a ser escolhido para a especialidade de atirador especial. No entanto, sem saber muito bem porquê, fora dado como básico. Então, em função dessa desvalorização como militar, que era mesmo disso que se tratava, acabaria selecionado para o serviço de faxina à ordem do sargento do rancho e dos cozinheiros. Passou a fazer de tudo um pouco. Para além de cuidar das pocilgas que funcionavam em apoio ao rancho, carregava sacaria, descascava batatas, lavava panelas e pratos de alumínio designados na gíria da soldadesca por discos. Por vezes, as faxinas até disputavam o número de discos que a cada um competia lavar.

Agora, Luís Rambóia, no meio de uma das suas estórias, ao verificar que o ti Zé Ricardo se aproximava do seu grupo, tentou mudar de assunto, mas ficou sem palavras e acabaria por se calar. Depois, de forma um pouco embaraçada, levou a mão ao bolso, pegou numa pequena caixa metálica de onde retirou um pedaço de capa de milho e tabaco da sua produção, e começou a preparar um cigarro.

O ti Zé Ricardo era de um sexagenário que residia numa aldeia vizinha, mas que, a pretexto de assistir à missa, costumava ir à povoação da Portela para conviver com os velhos amigos. Era um homem experiente e aprimorado pelo o que a vida lhe ensinara enquanto correra mundo em busca de melhor situação financeira. Para além disso, era um sobrevivente da primeira guerra mundial. Em junho de 1916, embarcara a caminho do norte de Moçambique integrado na terceira força enviada por Portugal para fazer frente aos alemães que avançavam sem oposição pela margem direita do rio Rovuma. Foram tempos de muitos sacrifícios e dos quais não guardava boas recordações, mas que, ainda assim, se orgulhava de ter servido a Pátria naquele tempo difícil para a o país e o mundo. Por todo esse historial de vida o ti Zé Ricardo não se deixava iludir pelas fantasias do jovem Rambóia e depois das normais saudações entre os presentes, disse:

-     Oh Luís!? Pelo que percebi, estavas a inventar estórias!

-  É tudo verdade ti Zé! – levou o cigarro à boca, libertou uma densa baforada de fumo aromático e acrescentou: – não foi como no seu tempo, mas passei lá dias bem amargurados. – o Zé Ricardo esboçou um sorriso irónico e retorquiu:

-     Não digas asneiras! Antes de mais toma nota no que te vou dizer! Vem mesmo a propósito. Acabei de ouvir, na minha telefonia, que Portugal vai enviar tropas para Angola. Parece que os massacres não têm parado de aumentar.  

-     Olhe a sorte que eu tive, em já ter passado à disponibilidade! – respondeu o Luís Rambóia, soltando uma gargalhada.

-     Não tenho assim tanta certeza! 

-     Era só o que faltava que me voltassem a chamar!?

-   Eu, no teu lugar, começava já a preparar mala! – rematou Zé Ricardo, que nesse momento se afastou para cumprimentar João Silva que, entretanto, terminara o leilão das oferendas, como habitualmente o fazia. Aquele que, para além de amigo e camarada em algumas etapas da vida, era, também, outro sobrevivente da primeira Guerra Mundial em Moçambique.  

Naquele tempo, as notícias demoravam a chegar ao interior. Os jornais só esporadicamente lá chegavam e a telefonia estava reservada aos mais abastados que já possuíam nas suas casas corrente elétrica. Uma regalia que, na aldeia da Portela, só agora se começava a implementar. Portanto, com essas barreiras à informação, dificilmente se poderia saber o que se passava no mundo. Então, quando se falava de um tema importante, havia que tentar obter informações por todos os meios possíveis.

Depois daquele diálogo que o preocupou, Luís Rambóia esqueceu as suas estórias e limitou-se a dizer:

-  Venham comigo! Vamos ouvir o noticiário no rádio do carro do ti Manuel Madeireiro.

Assim, os dois jovens que o escutavam concordaram em o acompanhar, partindo a caminho da garagem, local onde a viatura se encontrava parqueada. Logo que ali chegaram, Rambóia sintonizou a telefonia na onda média da Emissora Nacional à espera de novidades que os pudessem inteirar da decisão governamental. Aliás, fora no rádio daquela viatura que se habituara a ouvir as crónicas dos correspondentes da Emissora Nacional espalhados pelo mundo, principalmente, a partir de 22 janeiro de 1961, aquando do assalto ao paquete de Santa Maria, em águas venezuelanas. Um sequestro com motivação política, que se prolongara até ao início de fevereiro no porto brasileiro do Recife e, que viria a causar um duro golpe no regime de Salazar, lançando os alicerces para a Guerra Colonial.

Depois, a curiosidade pelas notícias, continuara, não só com o regresso do barco de Santa Maria a Lisboa, como ainda, com as crónicas de Ferreira da Costa relatando a sublevação de trabalhadores em Angola que munidos de catanas e canhangulos, destruíam casas e plantações de algodão. E agora, em março, com o relato de massacres contra a população branca e os operários que para ela trabalhavam.

Depois de confirmada a notícia do embarque eminente dos primeiros militares para Angola, um dos jovens comentou:

-     Oh Rambóia! Também acredito que vais ser chamado!

-   Isso é que era bom! Eu já fiz bem a minha parte! Agora é a vossa vez. – respondeu o Rambóia com cara de poucos amigos.

Mas, ainda mal tinham terminado aquele diálogo quando surgiu uma patrulha da Guarda com uma notificação para que o Luís Rambóia se apresentasse, urgentemente, na sua Unidade Militar.

Passados oito dias, aquele embarcou no Paquete Niassa a caminho de Angola triste e desalentado. Partia para um palco de guerra sem a indispensável formação militar. Nem física, nem técnica e muito menos psicológica. Enfim…ficava entregue à sua sorte e assim, para além de ter perdido a liberdade, todos os seus projetos de vida ficariam adiados.

 

 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

QUANDO OS DEUSES SE IRRITAM

 


Logo pela manhã, daquele domingo de Dezembro, quando chegámos ao alto de Fajão, lá mesmo no cume junto aos geradores eólicos, encontrámos uma Serra risonha e acolhedora, coisa que, naquela época do ano, raramente acontecia. A atmosfera estava límpida e o sol, que espreitava por entre nuvens dispersas, tornava a temperatura amena permitindo, assim, um olhar sobranceiro sobre os horizontes, de um lado, grande extensão do Vale do Ceira, do outro, de parte da barragem de Santa Luzia. Serra que, para além de nos arrebatar com as suas magníficas paisagens, também nos convidava para o exercício cinegético que, devido à pandemia e ao confinamento, só agora nos era possível retomar.

Assim, em função das boas condições que ali encontrámos e arrebatados pela paisagem, depressa abandonámos o automóvel, onde nos fazíamos transportar, prontos para a contenda. Munidos do material essencial e equipados com fato aligeirado, partimos, para mais uma jornada, calcorreando os montes serranos, em busca das perdizes bravias. No entanto, estávamos longe de imaginar o que a meteorologia nos reservava para esse dia. Se bem que os Deuses parecem reservar, sempre, o mau tempo para os dias de caça.

Por volta das dez horas, depois de termos percorrido mais de dois quilómetros, escalando rochedos e calcando tojos, carquejas e moitas, já em plena cordilheira do Açor, o Céu fechou-se rapidamente à claridade e em poucos minutos ficámos expostos à intempérie. Como que investido de uma imensa crueldade, o vento virou para nordeste fustigando tudo ao nosso redor e trazendo consigo denso nevoeiro que nos mergulhou na escuridão. No mesmo instante, as nuvens romperam-se parindo farrapos de neve que, aos poucos, iam pintando de branco o chão que pisávamos. Uma mudança brusca no tempo que, para além de nos dificultar a orientação, os movimentos e a respiração, também nos gelava o corpo.

Eu e o Mário, que era o amigo que me acompanhava nesse dia, não tínhamos dúvidas que, perante o quadro que nos envolvia, não seria fácil enfrentarmos a aridez daquela serra nua. Serra que, quando os Deuses se irritam, não deixa de ser madrasta com os incautos. Nada a que já não estivéssemos habituados. Em anos anteriores também nos deparámos com dias de tempo agreste, mas nada daquilo a que, agora, assistíamos. É preciso realçar que, a época do ano, a altitude e a imprevisibilidade da natureza naqueles montes, são determinantes na situação do tempo. Assim, mais uma vez, fomos surpreendidos pela repentina alteração climatérica que não nos permitiu chegar ao nosso abrigo sem passarmos por toda aquela adversidade.

Apesar da visibilidade reduzida pelo nevoeiro e da falta do agasalho apropriado para enfrentar o vento gélido, ainda fizemos um compasso de espera na esperança que as condições, entretanto, melhorassem. Mas, de nada nos serviu. Depois de alguns minutos, em que nos abrigámos numa rocha que apresentava uma saliência em jeito de alpendre, o tempo ainda se agravou. Então, esboçando um esgar de desalento e rendidos à nossa impotência, depressa reconhecemos que não tínhamos outra alternativa senão tentar regressar à base o mais rápido possível.

No nosso escalão etário, sexagenário, tudo se torna mais problemático. O peso das temporadas, agora, já não nos permite facilitar como o fazíamos em tempos idos. Tempos em que o espírito aventureiro associado à nossa juventude era compatível com qualquer cenário, por mais complicado que se apresentasse. Então, sem pensar duas vezes, em lanços quase paralelos e orientados pelos cães perdigueiros, fomos descendo a montanha, por entre piçarras escorregadias e arbustos rasteiros, com cuidados redobrados para evitar uma queda que nos poderia ser fatal.

Não vimos perdizes, mas esse também não era o nosso único objetivo. Ainda assim, apesar das dificuldades que passámos, não deixámos de ter uma manhã proveitosa. Porque ali, em plena jornada de caça, o tempo passa quase sem darmos por isso. Não nos lembramos da pandemia nem de outras preocupações que ensombram o nosso quotidiano. Para nós, a prática cinegética, não passava de um pretexto para dialogar com a natureza agreste e, ainda, usufruir da generosa companhia dos perdigueiros. No meio da dificuldade, ainda assistimos a uma situação aprimorada e bonita de se ver. Os cães, movidos por uma lealdade inquestionável, puseram em evidência todo o seu instinto protetor, colaborando na nossa orientação para fugir ao mau tempo.

Entretanto, quando nos aproximávamos do local onde deixámos o veículo, fomos surpreendidos por um caçador que, utilizando uma viatura todo o terreno, parecia desafiar os Deuses da intempérie ou mesmo tirar partido da adversidade. Era frequente cruzarmos com aquela criatura que alcunhávamos de Fariseu que, talvez para não tirar o lustro às botas, raramente víamos a pisar moiteira. Ainda assim, em marcha muito lenta e iluminado por potentes faróis de nevoeiro, parecia passar à lupa as zonas mais abertas. Sabendo, como nós, que, as perdizes, com o tempo invernoso, procuram as clareiras onde se sentem mais confortáveis, mas também ficam mais expostas ao perigo.

Nós, ao fim de trinta minutos que pareciam não ter fim, sem vermos um palmo à nossa frente, molhados e gelados até aos ossos, chegámos ao conforto da nossa viatura que nos conduziu à tão desejada Malhada do Rei. Local onde buscávamos melhores condições de tempo.

Era ali, no “nosso” abrigo, no aconchego do parque das merendas, situado no sopé da aldeia e contígua à ribeira, que habitualmente nos reuníamos. Era ali, perto da saída do túnel e usufruindo da hospitalidade daquela gente, que tomávamos as refeições em puro convívio com a natureza e os amigos.   

Desta vez, como frequentemente acontecia, contámos com a colaboração do amigo Manuel. Um homem que depressa arranjou lenha para acender a fogueira. Precisávamos de enxugar a roupa e afugentar o frio que teimava em não nos dar tréguas. Para além de outros predicados, aquele amigo era um profundo conhecedor do viver serrano, que não se poupava a esforços para auxiliar os amigos. Era também um excelente comunicador. Sempre que nos encontrávamos não se cansava de contar estórias, algumas verdadeiras outras nem por isso, mas todas eram escutadas com a mesma atenção.

A propósito do túnel, ali existente e, destinado ao transvase da barragem do Alto Ceira para a barragem de Santa Luzia, também guardava algumas recordações que fazem parte da história da obra.  

Contava ele que, há menos de uma década, durante o período de verão, as pessoas mais afoitas da aldeia, ainda utilizavam o túnel como via de ligação apeada entre a Malhada do Rei e as povoações de Ceiroco, Camba, Porto da Balsa e outras. Todas situadas do outro lado da serra. Porque, para além de ficar a menos de metade da distância, o seu traçado, quase plano, era mais fácil de percorrer. Ele próprio o utilizara, vezes sem conta, tanto a pé como de trator agrícola. Até para apanhar trutas sem que as autoridades dessem por isso. Sempre que o caudal baixava, algumas trutas ficavam encurraladas nos charcos e bastava utilizar uma pequena rede para as capturar. Também, em algumas ocasiões, chegou a dar boleia, na bagageira do trator, aos amigos que lha solicitavam. No entanto, em todas as deslocações, era imprescindível usar de uma lanterna pois, era a única forma de dar vida aos quase sete quilómetros de total escuridão, mergulhado nas entranhas da terra.

Depois do almoço, que se prolongou por mais de duas horas e onde, para além de um bom tinto, não faltou o tradicional bacalhau e a castanha assada, dirigimo-nos para a Casa de Convívio da aldeia. Ali, tomámos o café e uma excelente aguardente de mel, de fabrico regional, que nos alegrou o espírito.

Apesar das dificuldades por que passámos, no final, regressámos a casa agradecidos à natureza por nada de mais grave nos ter acontecido e prontos para nova etapa se os Deuses nos concederem essa benesse.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O DECLÍNIO DO PINHEIRO-BRAVO

Durante grande parte do século passado, a economia serrana assentava, essencialmente, na agricultura de subsistência, na criação de gado ovino e caprino, na produção de carvão e na exploração do pinheiro-bravo. 

O pinheiro-bravo que é originário da Europa mediterrânica resiste ao frio e à seca com alguma facilidade, mas desenvolve-se melhor em terrenos arenosos sob temperaturas mais amenas. Para além da madeira, permite a extração da resina. Nessa época, o pinheiro estendia-se por vastas áreas do território serrano, entre o limite das terras de semeadura e a crista dos cabeços. Embora se trate de uma espécie de crescimento lento, quando implementada em terreno fértil e encostas solarengas, cresce com maior robustez, à média de um metro por ano. A reprodução é feita através do pinhão alado que é libertado pelas pinhas, no fim da primavera, sendo depois levado pelo vento para clareiras onde vai germinar em contacto com a humidade do solo. Infelizmente, devido à doença do “Nemátodo”, aos fogos florestais e ao corte para retirar madeiras, tem vindo a desaparecer do interior do país. Situação que afeta também a indústria resineira que vai ficando sem matéria- prima para produzir os derivados da resina.

Na época, o trabalho da colheita de resina, na região serrana, criou muitos postos de trabalho e permitiu aos proprietários dos pinhais o recebimento dos sempre preciosos tostões, que eram pagos no final de cada temporada, em função do preço contratado e do número de bicas ou sangrias que cada um possuía. Como não existia na região mão-de-obra suficiente e preparada para a extração da resina, recebia imigrantes de localidades como: Idanha-a-Nova, Almaceda ou Castelo Branco e outras que também buscavam os tão desejados postos de trabalho que escasseavam nas suas terras de origem.

Para além dos lucros da resina, quando surgia alguma despesa extraordinária, os proprietários recorriam à venda de pinheiros para equilibrar o orçamento familiar. Apesar de toda essa aparente mais-valia económica que o pinheiro-bravo fornecia, não deixava de ser uma fonte de desentendimentos entre todos os intervenientes. Por um lado, alguns proprietários de courelas encarregavam-se de mudar os marcos e alterar, unilateralmente, as estremas para chamar a si árvores que não lhes pertenciam. Por outro, os resineiros faziam cortes excessivos ou mesmo várias sangrias no mesmo pinheiro, para daí retirar maior quantidade de resina, pagando somente uma bica simples se o proprietário da mata não desse conta disso. Ao mesmo tempo, ignoravam que o excesso de colheita enfraquecia de tal modo o pinheiro que alguns acabavam por sucumbir. Também se enganavam, deliberadamente, nas estremas para resinar um ou outro pinheiro que se mostrava mais pujante, na busca de maior quantidade de resina. Situações que davam origem a discussões. Como se isso não bastasse, os danos nos utensílios da recolha de resina eram frequentes, quer por furto, brincadeira ou mesmo por má-fé e causavam a ira de resineiros, proprietários dos pinhais e até donos das resineiras. Ainda, no início de cada época deparavam-se com a falta de muitos púcaros de barro que se destinavam a aparar a seiva do pinheiro. Alguns eram desviados para uso doméstico, principalmente para beber o vinho nas adegas e até constava que o vinho servido no barro aveludava o paladar.

A propósito de brincadeiras relacionadas com a resina, recordo um episódio ocorrido na década de 1950, quando três jovens, com idades a rondar os quinze anos, que pastoreavam o gado nos arredores da aldeia, se depararam com um barril cheio, com duzentos litros de resina, optaram por um divertimento invulgar. E de que é que eles se haviam de lembrar, lançar o barril pela encosta abaixo pelo simples prazer de o ver rebolar. Escolheram o local mais apropriado para que aquele rolasse autonomamente, soltaram-no e detiveram-se a comtemplar aquele cilindro destrutivo.

O barril, fabricado em madeira de carvalho, aguardava ser recolhido por um de dois carreiros, que se ocupavam naquele tipo de transporte quase em permanência, para um local acessível a uma camioneta, mais concretamente para o estaleiro do sítio das Árvores, junto à Estrada Nacional 112, perto das Moradias. Mas os comparsas não lhe deram oportunidade para que tal.

A descida era muito acentuada e prolongava-se por várias centenas de metros. Como seria de esperar, ao fim de poucos segundos, o barril atingiu tal velocidade que se tornou imparável, derrubando tudo o que se lhe deparava pela frente. Apesar da solidez da resina e da resistência da vasilha, a partir de certa altura, começou a perder o conteúdo, que foi deixando aos poucos ao longo da encosta repleta de vegetação diversa, até se imobilizar no leito do ribeiro. Embora parcialmente esventrado, quando finalmente se imobilizou, deixou os populares, que laboravam nas terras de semeadura, incrédulos com o acontecido, dado que não tinham memória de assistir a algo idêntico. O susto foi enorme com aquela situação invulgar e logo que chegaram à povoação, não se cansaram de relatar o sucedido.

Os autores da façanha, após terem presenciado aquela experiência espetacular, que os surpreendeu, não só pela velocidade que atingiu e ruído que provocou, mas sobretudo pelo rasto de destruição que deixou à sua passagem, congeminaram uma forma de se furtar à responsabilidade. Conhecedores do terreno e de outros potenciais autores, capazes de uma brincadeira semelhante, decidiram atuar por antecipação e atribuir a autoria do delito a três outros jovens da aldeia, também pastores de gado, mas que por sinal, nesse dia, andavam noutro local.

Condenados à partida de pouco valeu aos injustamente incriminados a negação de tal ato, porque logo que o boato se espalhou pela aldeia, não perderam pela demora e levaram um corretivo dos pais. Contudo, o castigo não ficaria por aqui. No dia seguinte, foram intimados a comparecer no Posto da Guarda, em cumprimento de queixa apresentada pelo proprietário da resina. Durante a inquirição, dois dos acusados negaram e quase convenceram as autoridades, mas o terceiro, talvez receando que o interrogatório se tornasse mais rigoroso, deitou tudo a perder, acabando por admitir ter participado no delito e em função disso, os três incriminados tiveram que ressarcir o dono da resina, na quantia de 140 escudos.

Ainda a propósito dos transportes de resina, noutra ocasião, na década de 1960 perto do Vale Dianteiro, dois garotos, um com dez anos de idade e outro com oito, resolveram apanhar boleia num carro de bois que circulava carregado com dois barris de resina. 

O carreiro era um homem com idade a rondar os cinquenta anos e um trabalhador determinado. Fruto do tempo de amargura que se vivia no interior serrano entregava-se à labuta quotidiana, tanto de dia com de noite, sem horários para refeições nem para descanso. Nesse dia fazia o transporte para o estaleiro existente na aldeia. Como habitualmente, aquele, no seu estilo desembaraçado, só conduzia os bois à soga quando o terreno obrigava a maiores cuidados de segurança, caso contrário caminhava à frente dos animais, de aguilhada ao ombro, numa postura que para aqueles garotos parecia distraída. Assim, aproveitando a aparência descontraída, quando o carro se aproximava dos dois petizes, anunciando a marcha numa chiadeira que se assemelhava a um interminável gemido, movidos pela imprudência própria da idade, sentaram-se, sorrateiramente, na traseira do carro, indiferentes ao perigo que corriam e com a convicção de que o carreiro não se havia apercebido. Acomodaram-se como puderam sempre com a preocupação de ocultar a silhueta no bojo dos barris para evitar serem detetados. Apesar do desconforto, a vigem foi prosseguindo com muitos solavancos que o piso irregular obrigava, mas para eles isso não representava obstáculo, apenas queriam usufruir de uma boleia que nunca tinham experimentado. Contudo, depois de terem percorrido perto de um quilómetro, já à entrada da aldeia, local onde o traçado se tornava mais irregular, o carreiro ter-se-á apercebido de presença dos dois passageiros clandestinos e resolveu reprimi-los à vergastada. Sem provocar alarido nem abrandar a marcha, afastou-se, sorrateiramente, da frente dos animais pronto para ação. Com a vara de tocar os bois em riste e pronto a desferir a vergastada, esperou que a traseira do carro se aproximasse da sua posição. Mas imediatamente antes, os dois garotos, num movimento ágil, conseguiram fugir e evitar o corretivo. É claro que, o carreiro quando viu gorados os seus intentos e reparou no riso divertido dos garotos, soltou um chorrilho de impropérios, com a convicção própria de quem não tinha outra alternativa.

          

 

sábado, 25 de abril de 2020

RETALHOS DE VIDA


Naquela manhã, André Sargaço despertou ao som estridente da uma sirene que, pela crescente intensidade do ruído, parecia convergir para a pensão onde pernoitava. Decorridos alguns segundos, ouviu a derrapagem de uma travagem brusca que pôs termo àquela sinfonia perturbadora deixando no ar, apenas, um som monótono que parecia provocado pelo movimento dos rotativos luminosos instalados num veículo, completado, logo a seguir, por vozes que, apesar de indecifráveis, soavam alvoraçadas. 
Impelido por automatismos adquiridos em palco de guerra, saltou da cama e correu à janela na perspetiva de se inteirar do que estaria a acontecer. Através das frinchas da persiana viu os flashes azuis libertados pelos pirilampos de uma ambulância que lhe tolhiam parcialmente a visão. Com a cautela indispensável para não despertar a curiosidade exterior, levantou parcialmente o estore, e presenciou grande agitação à volta do veículo de socorro. Junto daquele encontrava-se um homem prostrado nos paralelos do passeio a quem dois socorristas tentavam prestar ajuda. Então, abriu a janela e escutou vozes que sobressaíam de entre o aglomerado e que indiciavam tratar-se de uma agressão a um transeunte. Pelo que ouviu, no meio de palavras de ordem “vivas à liberdade e morte aos pides”, chegou à conclusão de que o ferido teria sido confundido com um colaborador da extinta PIDE. Embora André Sargaço não concordasse com tal método de justiça também já nada podia fazer para o evitar. 
Depois do ferido ter sido transportado ao hospital, André Sargaço, ainda à janela e mal refeito com o que acabara de ouvir, levantou totalmente o estore e lançou um olhar demorado pela avenida como que saboreando o bom tempo que se fazia sentir. Estava de regresso à capital, onde vivera cinco anos antes de partir para cumprir o serviço militar, que agora começava a despertar para o seu habitual frenesim. Parecia ter a mesma rotina como acontecia antes de deixar a cidade, já lá iam perto de três anos. No entanto, agora, notava algumas alterações, não só pelo que acabara de assistir, como ainda, verificava que algumas fachadas dos edifícios estavam decoradas com slogans, de toda a espécie, alusivos à revolução de 25 de abril. 
Dali, zona central da cidade, observava que os plátanos se iam despindo de folhagem permitindo, assim, uma melhor visibilidade da extensa artéria. Os transeuntes movimentavam-se à pinha inundando os passeios num constante vaivém de marcha apressada e feições carregadas que pareciam esconder as muitas frustrações que a democracia ainda não havia preenchido. Nas faixas de rodagem, os automóveis começavam a amontoar-se em filas e os ocupantes aguardavam, com notada impaciência, a ordem do sinaleiro que, em cima da peanha, regularizava o trânsito de veículos e peões. Um cantoneiro da higiene, com aspeto sonolento, varria, com lentidão, folhagem, beatas e outros detritos que conspurcavam a via. Na praça de táxis, um passageiro gesticulava, irritado, contestando a tarifa que o motorista lhe queria aplicar. O relógio da fachada principal do edifício da Estação do Rossio assinalava oito horas em ponto. À entrada daquele, no piso térreo, junto ao primeiro degrau da extensa escadaria, movia-se um ardina que apregoava os jornais matutinos, numa ladainha contínua e rouca, lembrando um cântico penoso e longínquo, quase um lamento. Um pouco mais adiante, ouviam-se os pregões de um cauteleiro que ecoavam ao longo da avenida. . .
Como que contagiado por aquele fervilhar de vida que lhe despertou o apetite, André Sargaço ataviou-se com roupa aligeirada que comprara em Luanda com o resto do dinheiro que não conseguira transferir para Portugal e logo a seguir correu para a sala de jantar em busca do pequeno-almoço. Ali, cumprimentou a empregada que aguardava a chegada dos hóspedes com um sorriso acanhado que lhe dava graciosidade. Logo que terminou a refeição matinal, despediu-se da moça e partiu sem destino definido. 
Na tarde do dia anterior, desembarcara no Aeroporto de Lisboa num avião comercial ao serviço do Exército Português. Uma viagem que pusera fim à sua comissão militar em Angola, que se prolongara por dois longos anos. Era o fim da incerteza no regresso e início de uma nova etapa. Agora, era tempo de retomar a vida que abandonara aquando fora chamado a servir a Pátria. Mas, para isso, precisava, em primeiro lugar, de recuperar psicologicamente. Sim, porque depois de uma longa servidão, sob stress constante, precisava de tempo para se adaptar à nova realidade do seu quotidiano e do país. Contudo, agora, a cidade, não lhe parecia o local mais apropriado para a sua recuperação psicológica, atendendo aos tempos conturbados que vivera em terras de África e ao ambiente revolucionário com que, agora, era confrontado. Logo que possível iria, certamente, seguir outro rumo. 
Quando chegou à rua, André Sargaço respirou fundo como que sorvendo a ligeira brisa que soprava da barra do Tejo. Acendeu um cigarro e dirigiu-se ao quiosque que ficava implantado em pleno passeio a escassos cinquenta passos. Queria comprar tabaco e uma cautela da lotaria. Embora não tivesse sorte ao jogo resolvera comprar um vigésimo como forma de registar o seu regressado à capital. Então, passou os olhos pelos títulos dos jornais expostos, à mistura com revistas para todos os gostos, que, como normalmente acontecia, relatavam assuntos de âmbito nacional e internacional. Contudo, quando se aproximava do balcão surgiu à sua frente um estropiado, agarrado a uma cadeira de rodas, que, a custo, se movimentava na sua direção e que apelava à caridade dos transeuntes. Pela tatuagem que aquele ostentava num braço e que lhe era familiar, André Sargaço concluiu que se tratava de um deficiente da guerra colonial. 
A ditadura nunca o deixara mendigar, mas agora já se podia movimentar, livremente, pela cidade. Já não tinha receio de mostrar a sua enfermidade. A liberdade de movimentos parecia ser a única conquista que a democracia lhe havia trazido. Escondidos pela ditadura, agora, os pobres, mutilados e outros deficientes, já eram visíveis.
No confronto com a enfermidade daquele homem, André Sargaço considerou-se um afortunado, atendendo a que também calcorreara terrenos em que o perigo espreitava a cada passo e regressara, fisicamente, incólume. Então, pegou na nota de vinte escudos que destinava à lotaria e entregou-lha. Após o agradecimento do mendigo que, certamente, não esperaria uma esmola tão generosa deu por si a pensar nas conquistas que a revolução tinha trazido ao país e apenas vislumbrou a liberdade de expressão e o fim da guerra colonial. No entanto, lembrou-se dos militares que ainda continuavam em África e chegou à conclusão que a realidade no terreno era totalmente diferente do que os políticos propagandeavam. Ali, os agitadores que se infiltravam nas sessões de esclarecimento que se destinavam a preparar a transição causavam crispação crescente entre os guerrilheiros dos movimentos de libertação e os militares portugueses viam-se envolvidos em escaramuças que não estavam autorizados a debelar… Porém, agora, esse assunto estava entregue aos políticos oportunistas e iluminados por ideologias revolucionárias mais interessados em agradar aos antigos inimigos com total abandono das tropas portuguesas que ficaram desarmadas e entregues à sua sorte.
Depois daquele episódio que debilitou o seu estado de alma, demandou, rua fora, sobre um manto de folhagem morta que se misturava com detritos caídos de contentores a abarrotar de lixo. Mais adiante foi surpreendido por uma barricada de rua formada por uma mescla de políticos de ocasião. Um bando de inúteis, cabeludos mal encarados, com calças à boca de sino, que controlavam carros e peões à procura de fascistas. A maioria delinquentes e vadios que, sob as capas partidárias, semeavam a desordem. À mistura com gritos de "terra a quem a trabalha" intimidavam e identificavam os transeuntes, entoando outros slogans progressistas alusivos ao momento e à liberdade. Uma forma revolucionária que, para ele era novidade, mas, ainda assim, colaborou com horda tentando evitar males maiores. 
Enquanto deambulava naquele cenário decadente, acendeu mais um cigarro saboreando o prazer das baforadas como se a nicotina o ajudasse a equacionar novo rumo para a sua vida. O vício do tabaco era mais uma pesada herança da vivência colonial que agora lhe parecia difícil de combater. Acendia um cigarro com o outro quase sem dar por isso, nem sequer equacionava os malefícios que tal prática lhe poderia causar à saúde. Contudo, quando pensava no assunto, prometia, a si próprio, fazer os possíveis para tentar recuperar a liberdade em relação ao vício. 
Na continuação da deambulação, André Sargaço deteve-se na sua vivência militar e chegou à conclusão que perdera os melhores três anos da sua juventude a troco de nada e ao serviço de uma causa que não servira ninguém. Como se o castigo já não bastasse, logo que pisou o território continental ficou entregue a si próprio. Abandonado pelo Regime Democrático nem sequer podia invocar a sua condição de combatente para não ser acusado de colaborador do regime fascista, como fora intitulado naquela barricada de rua. 
Lamentavelmente é talvez, e não só nesse período revolucionário como mais tarde com o regime democrático consolidado, o único país do mundo a desprezar os seus combatentes.  

sábado, 21 de março de 2020

PASSEIO TURÍSTICO À TRUTA


Na abertura da pesca desportiva à truta que ocorreu, como habitualmente, no dia um de março, acompanhado por três amigos, seguimos ao encontro das ribeiras da nossa Serra. Este ano também não foi exceção. Bem cedo, à hora combinada, partimos com destino, inicial, ao rio Ceira a fim de confraternizar com a natureza rude.
Por volta das sete horas da manhã, chegámos aos Cavaleiros, sob o Céu límpido e uma temperatura amena, num cenário envolvente de carquejas e moitas floridas que parecia anunciar a chegada da Primavera. Iniciámos a jornada, contemplando a beleza daquele jardim natural, num local em que o terreno é de configuração sinuosa e afundado entre montanhas, mas onde o eterno cantarolar da corrente nos convidava a lançar a linha à água. Perante a generosidade daquela dádiva da natureza, avançámos rio adentro prontos a enfrentar qualquer adversidade. No entanto, nesse percurso, movimentámo-nos com muita dificuldade devido à proliferação de acácias e salgueiros que, em cada dia, crescem descontroladamente e vão invadindo não só as margens como também as linhas de água. Contudo, logo que nos desenvencilhámos de todo aquele emaranhado vegetal, prosseguimos para montante com destino ao Casal Novo, Mata, Cartamil e Ponte Fajão em busca de melhores condições de progressão. 
No lugar do Casal Novo cruzamos com um pescador do nosso escalão etário, impelido para aquelas andanças por motivo idêntico ao nosso, que nos chamou à atenção para a ausência de pescadores que, em anos anteriores, não faltavam à abertura da pesca. Não foi surpresa, de ano para ano, já era notado algum abandono por pessoas que, até então, se dedicavam à pesca desportiva. Para além desses, também não encontrámos jovens. Indicador de que aquele desporto salutar não desperta o interesse da juventude atual que, certamente, tem assuntos mais importantes para ocupar os tempos livres o que não era o caso no tempo da nossa.  
O que nos move não é a quantidade de exemplares capturados, o que só esporadicamente acontece, mas essencialmente usufruir do reencontro com velhos amigos que são: campos, serranias, rios, ribeiras e riachos. Uma forma de buscar liberdade na tranquilidade dos montes tentando, tanto quanto possível, fugir à balbúrdia citadina e à hipocrisia de alguns políticos com que somos confrontados a cada dia. Pena é que os acessos, repletos de vegetação selvagem, se vão tornando, em cada passo, mais inacessíveis, dificultando a movimentação de qualquer transeunte e obstruindo o habitat de todas as espécies piscícolas.  
Para nós, mais de que um desporto, trata-se de uma forma diferente de dialogar com a nossa Serra, apesar das limitações físicas que a marcha imparável do tempo nos impõe, atendendo ao meio hostil com que somos confrontados, constituído por corrente de água, vegetação densa, rochedos escorregadios e açudes escarpados. 
Durante décadas percorremos rios e ribeiras de toda região centro, mas depois da implementação das concessões de pesca que interditaram muitos desses cursos de água ficámos limitados aos lotes ainda livres que, por sinal, correspondem sempre aos mais inacessíveis que, por sua vez, são sempre os mais afastados das localidades. Naquele tempo, conhecíamos à lupa vários rios como: o Ceira, o Alva, o Unhais e quase todos os afluentes destes dos quais guardamos recordações de momentos inesquecíveis passados em pleno convívio com a natureza.
Hoje, a política de concessões que deveria ter como finalidade o benefício das espécies e do ambiente, em nosso entender, só se destina a burocratizar. Não se trata de uma questão de rebeldia contra as concessões de pesca. Longe disso. Apenas discordamos da sua implementação porque ainda não constatámos nenhuma vantagem neste tipo de regimes. Nem para os desportistas, nem parra o ambiente, nem tão pouco para as espécies. A menos que se façam repovoamentos e se limpem as ribeiras no seu todo, tanto nos lotes destinados à prática desportiva como nas zonas de abrigo ou desova as concessões não terão, em nossa opinião, qualquer mais-valia relativamente aos troços livres. Até lá que nos perdoem os simpatizantes deste sistema, mas nós só destacamos burocracia a que se juntam mais licenças para além das exigidas pelos serviços florestais (ICNF). De qualquer modo e perante tal cenário, só nos resta uma solução que é tentar contornar as areias que fazem os possíveis para emperrar a engrenagem da pesca desportiva em liberdade.   
No meio de tudo isso, reconheço que se aproxima o momento de, também nós, obedecendo à marcha imparável do tempo que caminha rapidamente para o entardecer da vida, desistirmos de uma prática desportiva que nos motivou durante décadas, sobretudo pelo prazer de degustar o farnel na intimidade da natureza. Também outros, do nosso escalão etário, com quem confraternizámos durante a prática desportiva, deixaram de nos acompanhar: uns porque o seu percurso de vida foi subitamente interrompido, outros porque a saúde já não lhes permite correr os riscos que este desporto comtempla. 
Na continuação da nossa etapa, por volta das onze horas, chegámos à ponte de Cartamil sem que tivéssemos capturado qualquer exemplar. No entanto, para além de observarmos os movimentos de diversos corvos marinhos que são hábeis mergulhadores em busca de peixe, convivemos de perto com duas lontras bem alimentadas que, indiferentes à nossa presença, basculhavam, descontraidamente, o leito do rio. E ainda, sem que nada o fizesse prever, fomos surpreendidos por um javali fêmea (javalina) que acompanhava vários filhotes (riscados) que, ao aperceber-se da nossa presença, desencadeou uma corrida tresloucada em direção a um dos nossos elementos que só por milagre se conseguiu furtar ao ataque. Nada que já não nos tivesse acontecido noutros locais, mas devo confessar que é sempre uma situação pouco divertida para quem a vive. 
Logo a seguir, como habitualmente, avançámos para o parque das merendas de Cartamil, (mais propriamente parque Laurinda da Conceição Fernandes) que se situa a cerca de cem metros a montante da ponte que, para nós, foi sempre um local de escala obrigatória, não só pelas suas boas condições como, ainda, por falta de alternativa na região. O dia solarengo que ia temperando o ar fresco que, entretanto, soprava de nordeste, convidava à preparação do almoço. A barriga começava a reivindicar a reposição dos níveis de sólidos e líquidos e nada melhor do que fazer-lhe a vontade. 
Quando chegámos ao parque, muito bem ilustrado por retábulos de santos e lápides com vários poemas de Ramos Mendes, fomos surpreendidos por um velho amigo que resolveu fazer-nos uma surpresa. Era um homem que nos acompanhou nem só na pesca como noutras etapas da vida e enquanto a saúde lhe permitiu respondeu sempre à chamada. Agora, na companhia da esposa e obedecendo ao apelo da alma, resolveu fazer-nos uma surpresa em plena contenda. Conhecendo as nossas rotinas, queria comungar do convívio e da amizade que sempre nos norteou. 
Começámos por acender o grelhador e enquanto se preparavam as brasas para grelhar o bacalhau, íamos degustando os acepipes acompanhados por um bom tinto alentejano e com graçolas à mistura que começaram, desde logo, pelo ataque do javali que foi o tema dominante. 
Durante o almoço, em alegre cavaqueira, demos largas ao apetite e recordámos histórias, vividas ao longo da caminhada da vida, que nos divertiram e nos incentivaram a novos reencontros se a pandemia (Covid – 19), entretanto, nos permitir. No final, por volta das catorze horas, o nosso amigo seguiu o seu destino lamentando o facto de já não nos poder acompanhar como tanto gostava, mas a vida é assim, não se compadece da nossa vontade. E nós partimos em direção à Pampilhosa da Serra, mais propriamente com destino às ribeiras de Pescanseco, a seguir Praçais, depois Carvalho e por fim Pessegueiro. Uma rota que, com o passar dos anos, se foi tornando quase obrigatória não passando de uma visita turística à nossa Serra. 
Apesar de todas as dificuldades que se avizinham em cada um de nós, nem tudo é mau, foi com satisfação que verificamos o trabalho que tem sido desenvolvido em prol da limpeza das ribeiras afluentes do rio Unhais, junto aos povoados, que nos permitiu a passagem em locais que até há pouco tempo nos eram inacessíveis. Um trabalho gigantesco que deixa a nu não só parte das margens como também as linhas de água. Como é sobejamente conhecido, não é um trabalho fácil, atendendo às difíceis acessibilidades e à vastidão da vegetação. Uma selva que engloba árvores de grande porte como: acácias, salgueiros, pinheiros, eucaliptos e amieiros. Tudo envolvido por silvas e vegetação rasteira que impossibilita qualquer movimento. Atendendo a que a natureza se transforma, em cada dia que passa, e a desertificação vai alterando a paisagem de forma irreversível, pensamos que pouco haverá a fazer atendendo a que a limpeza é, economicamente, inexecutável.
                No final da jornada regressámos a casa, e embora as capturas não tenham correspondido às expectativas, com o sentimento de que passamos um dia em puro convívio com a natureza agreste. Sem esquecer o excelente almoço que é, nas atuais circunstâncias, um dos melhores motivos para visitar a nossa Serra. Mas, ainda assim, cientes que estará próximo o tempo de arrumar o material de pesca.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

A MINA DAS AGRURAS


Durante o Estado Novo o investimento público no interior serrano era quase inexistente e obras de vital importância para a população, como as relacionadas com o abastecimento de água, distribuição de luz elétrica ou a melhoria das vias de comunicação, só se conseguiam depois de muita insistência e diplomacia junto dos organismos estatais.
Com esse fim em vista, e para apoiar o povo deixado ao abandono, foram criadas muitas coletividades regionalistas, que tinham como divisa estatutária, entre outros valores, “melhorar e engrandecer a sua terra” e os seus dirigentes não se poupavam a esforços para levar por diante obras que, de outra maneira, dificilmente se concretizariam. 
Devido a essa falta de investimento, nos anos sessenta do século passado, algumas aldeias serranas ainda não possuíam água canalizada e Moninho, apesar de se situar junto à EN 112 e perto de Pampilhosa da serra, sede do concelho, era uma delas.
Ali, beber um simples copo de água, cozinhar, lavar a loiça, tomar banho, dar de beber aos animais, regar as plantas e demais utilizações domésticas, sem uma torneira por perto, era um trabalho acrescido para os habitantes da aldeia. Em função disso, a única forma de terem água para essas necessidades diárias era carrega-la, em cântaros e outras vasilhas, desde uma mina que existia ao fundo de um valeiro, nas imediações do povoado, até aos seus lares. Era uma fonte que teve origem com uma escavação, a perder de vista, até às entranhas da terra, de onde brotava água com abundância, mesmo durante o verão. Ali, perto da noite, as donas de casa, depois de terminarem a labuta do campo, onde se ocupavam na agricultura de subsistência, faziam fila para encher cântaros e outras vasilhas. Uma tarefa impensável nos dias que correm, mesmo nos lugares mais desertificados do interior. 
Ora, se não havia água para o consumo doméstico, nem mesmo em fontanários, quando se tratava de realizar uma obra de construção civil, à base de massas de cimento, essa tarefa era ainda mais complicada. Não existia outra alternativa senão carregá-la utilizando os meios compatíveis com as necessidades de consumo. 
Nessa época, durante as férias grandes, André Sargaço, que à data tinha pouco mais de doze anos, foi contratado para aquela aldeia a fim de transportar água para uma obra onde os operários se encarregavam do restauro de uma habitação. Queria comprar uma viola e aceitara trocar uns dias de divertimento e convívio com os amigos, por um trabalho que seria remunerado de acordo com os resultados. No entanto, quando aceitara aquela função estava longe de imaginar o calvário que o esperava. Carregar água de uma mina, que se situava ao fundo de um barroco por um trilho com bastante inclinação, que distava do local cerca de cem metros, não era tarefa agradável, especialmente, para uma pessoa com a sua idade.
No seu primeiro dia de trabalho, logo que se inteirou da função de que fora incumbido, entregou-se à luta de forma dinâmica como se um divertimento se tratasse. 
Começou por carregar dois baldes, de dez litros cada, um em cada mão, cujo líquido se destinava a ir enchendo vários bidões de duzentos litros cada. Mas os primeiros resultados não foram animadores: a subida era íngreme e os braços frágeis depressa começaram a ceder. Para além disso, o desperdício de água provocado pela deslocação em terreno acidentado era considerável. Depois de cada descarga, André Sargaço olhava para o bidão e ao notar que o nível quase não se alterava ficava um pouco desalentado. Mas, logo a seguir, caminhava mais depressa ao encontro de novo carregamento para tentar mostrar serviço e não por em causa a sua capacidade. 
Ao fim de várias deslocações à fonte, concluiu que tinha que arranjar outra forma de transporte menos cansativa e com menor desperdício. Então, pensou em utilizar dois regadores em zinco que eram, parcialmente, protegidos com tampa. Sim, essa parecia ser uma forma de poder caminhar mais depressa e não entornar parte da água. Solução que, embora não fosse a ideal, lhe parecia ser a mais adequada àquele serviço. Com essa ideia em mente, o seu trabalho foi continuando cada vez com maior dificuldade e com paragens mais frequentes para aliviar os braços que não estavam familiarizados com um esforço tão prolongado. 
Enquanto aguardava pela chegada das vasilhas que solicitara e se ia movimentando naquele vai e vem extenuante, pensava nos amigos que, certamente, àquela hora, se encaminhavam para o Poço Escuro para os habituais mergulhos e pescarias. Coisa que, para ele, apesar do calor que se fazia sentir, agora, estava vedado. Logo a seguir, veio-lhe à mente uma história que ouvira a um antigo militar sobre o Forte da Graça em Elvas, para onde aquele fora atirado por motivo de castigo. Segundo contava, os prisioneiros, ali, eram obrigados a carregar um barril meio-cheio de água desde a fonte, no sopé da montanha, até ao Forte situado la bem no topo, e André Sargaço imaginou o sacrifício que aqueles fariam. 
A meio da tarde todo o corpito lhe doía. Como se isso já não fosse suficiente o calor sufocante ainda veio agravar a situação. Para além dos braços também as pernas não queriam colaborar no esforço. Nem mesmo as palavras de incentivo que lhe chegavam das pessoas com quem se encontrava no trajeto lhe davam alento. Embora lhe apetecesse desistir não o podia fazer, por uma questão de princípio, perante o compromisso que assumira.  
No meio daquela azáfama, André Sargaço foi incumbido de se deslocar à taberna, que se situava junto à EN 112, a cerca de duzentos metros da obra, para ir buscar uma mistura de bebidas a que chamavam cervejão. Conforme acordaram, dessa vez, seria constituída por cerveja, gasosa e vinho branco. Uma espécie de refresco, pese embora algum teor alcoólico, que permitia aos trabalhadores ingerir maior quantidade sem se sentirem afetados pela bebida. Então, assim que foi delegado naquele recado sentiu-se aliviado e meteu-se a caminho sem grande pressa porque enquanto tratava daquele assunto folgava os braços e se a água, entretanto, acabasse já tinha uma justificação. Ainda assim, levava na bagagem uma recomendação para que se apressasse no regresso para o refresco não aquecer. 
Assim que chegou à taberna, local onde os trabalhadores se reuniam no final da jorna para tomar uma bebida antes de seguirem aos seus destinos, entregou o garrafão, de cinco litros, ao taberneiro, com a indicação da quantidade e da mistura que pretendia. Aquele que, algumas vezes, bebia em parceria com os clientes, não perdeu tempo e, como se procurasse o melhor vinho para servir bem os fregueses, abriu um garrafão que escolheu entre o amontoado que tinha junto ao balcão, encheu um copo e saboreou uma golada, depois de analisar o néctar esboçou um esgar de satisfação e disse: 
-    Oh rapaz!? Diz ao teu patrão que este vinho é do melhor que há cá na Serra! Portanto, desta vez, não aceito reclamações!
Seguidamente, entregou-se à preparação da mistura adicionando os ingredientes solicitados. Assim que terminou e de acordo com a indicação que, inicialmente, recebera do encarregado da obra, anotou a despesa no livro de registo dos débitos ou livro dos calotes como ele gostava de dizer. E logo a seguir, levou o copo à boca, bebeu o resto vinho e dando ênfase à sua especialidade de enólogo, comentou: 
-    É uma pena misturar vinho desta qualidade com outras zurrapas! Querem boa qualidade e depois estragam tudo: vinho, gasosa e cerveja! – e concluiu: - Não te demores rapaz! Que, com este calor, o cervejão aquece depressa!
Embora não precisasse de recomendações, André Sargaço partiu sem responder ao taberneiro que, por sinal, lhe pareceu já um pouco tocado. Logo que atravessou a EN e entrou no carreiro de atalho à via principal, ladeado pelo emaranhado de acácias mimosas, não resistiu. A sede era muita e resolveu molhar a boca seca. Levantou o garrafão, provou e bebeu uma golada, depois outra bastante mais prolongada até se achar satisfeito e logo a seguir, partiu em passo rasgado ao encontro dos operários que aguardavam o refresco com ansiedade. Enquanto se deslocava, concluiu que era a primeira vez que bebia cervejão e ficou agradavelmente surpreendido dado que lhe soubera melhor que o vinho tinto que, por vezes, provava na adega do seu pai. 
Assim que chegou à obra, depois de servir um copo a cada trabalhador, não se fez rogado, bebeu também a sua parte e logo a seguir voltou à via-sacra que lhe fora reservada. Decorridos alguns minutos, tudo se modificou para melhor: os baldes ficaram mais leves e as pernas deixaram de reclamar. Apesar do calor que se fazia sentir, descia e subia a rampa em marcha mais rápida e assim continuou, com o mesmo empenho, até ao fim da jornada. 
Na madrugada seguinte acordou mal disposto só que não teria sido pela quantidade da bebida, mas pelo facto de não estar habituado a ingerir bebidas alcoólicas. Quando regressava ao trabalho, ainda enjoado, prometeu, a si próprio, não repetir a experiência. Promessa que não viria a cumprir atendendo a que passou a ir à taberna duas vezes por dia e o calor não dava tréguas. 
Logo que chegou à obra, já na presença dos regadores, muniu-se de um pequeno pau para servir de canga à qual, em cada extremidade, juntou um gancho em ferro para pendurar as novas vasilhas. Assim, o peso já recaía sobre as costas e não nos braços como acontecera na véspera. Nos primeiros carregamentos tudo lhe pareceu mais facilitado: andava mais rápido e não tinha desperdício de água, mas com o passar do tempo o cansaço e a saturação acabariam por se manifestar. 
Naquele tempo, na região serrana, o movimento rodoviário era muito reduzido e a passagem de qualquer viatura pela EN despertava a curiosidade dos residentes que, por vezes, atendendo ao tipo de veículo, até davam palpites sobre o nome do condutor e proprietário em causa. Talvez por isso, a meio da tarde, quando André Sargaço se deslocava para a taberna, a fim de se ocupar de mais um refresco, ouviu o som de uma buzina e parou para observar o que se passava quando reparou que aquela se limitava a anunciar a aproximação de um ciclista que se deslocava no sentido Valongo – Moninho. Tratava-se de um cantoneiro que, depois de terminar o seu período de trabalho, se fazia anunciar numa algazarra interminável provocada por uma buzina manual que adaptara à bicicleta. Como diariamente acontecia, tinha paragem obrigatória na taberna onde, repunha os níveis de líquidos, conversava e, quando era provocado, fazia questão de se empenhar na defesa à sua classe. Quando era confrontado com críticas à falta de produtividade dos cantoneiros, que há época eram habituais, para além de contrariar esse ponto de vista, não se cansava de realçar a dureza do seu trabalho enfrentando os humores da natureza, tanto no verão como no inverno. 
Naquele dia, o cantoneiro não perdeu tempo. Quando André Sargaço chegou à taberna já aquele segurava um copo de tinto e falava da sua jornada de trabalho que decorrera debaixo de um sol escaldante na zona do Valongo. Valongo era a área do seu Cantão (área de trabalho que lhe estava destinada) onde lamentava não existirem sombras para se abrigar do sol escaldante nem água fresca para matar a sede.

Para André Sargaço o quotidiano foi decorrendo sem grandes alterações, mas ao fim de duas semanas deixou o trabalho, recebeu o ordenado e foi gozar as merecidas férias.

terça-feira, 23 de abril de 2019

O CACIMBADO NAS TERRAS DO FIM DO MUNDO

Vista aérea do aquartelamento de Gago Coutinho, sede do Comando da Unidade.

                             A propósito das comemorações de mais um aniversário da revolução de 25 de Abril, lembrei-me de um camarada que me acompanhou na guerra colonial.
                            

Passaram muitos anos desde que deixei as matas de Ninda, mas hoje, enquanto remexia o arquivo da minha memória, regressei ao tempo em que calcorreei aquelas terras, lembrando um camarada que me acompanhou em algumas etapas calcando areia minada. Embora se tratasse de uma convivência de, apenas, três meses foi a suficiente para verificar a degradação, física e psicológica, a que a longa servidão o conduzira. Um jovem, como todos nós, a quem roubaram a juventude a troco de interesses que não eram os seus. Então foi assim:
Naquele dia, o meu grupo de combate foi escalado para se deslocar a Gago Coutinho (atual Lumbala) a fim de se ocupar do reabastecimento logístico. Às seis horas da manhã, a coluna composta por quatro Berliets e trinta militares, iniciou a marcha em Ninda, para percorrer cerca de setenta quilómetros de picada cujo percurso, sem incidentes, demorava perto de três horas.
Logo que chegámos à sede da Unidade, o Comandante determinou-me para não regressar a Ninda sem me fazer acompanhar de um Furriel, com alcunha de Cacimbado, que, por motivo de castigo, acabara de chegar do norte de Angola. Com a indicação de que se aquele não acatasse, prontamente, a ordem de marcha teria que ir sob prisão. Ainda tinha seis meses de comissão para cumprir e acreditava que ali, naquele fim de mundo, seria o local mais indicado para expurgar as suas faltas disciplinares. O aumento de tempo na comissão resultara da sua última punição que motivou a transferência para a Unidade a que eu pertencia.
Em face da descrição daquele homem concluí que o bar seria o local mais provável para o localizar. Assim, logo que entrei, deparei-me com um militar que não se enquadrava no escalão etário dos restantes elementos da Unidade. Era um veterano, visivelmente desgastado, que vestia farda número dois com muito uso, dando ideia, à partida, de uma longa vivência como militar. Estava sentado com as pernas apoiadas numa cadeira e na mão segurava um copo com uma bebida que me pareceu Whisky. Sem alterar a postura, logo que encarou comigo, atirou de imediato:
-    Oh maçarico?! Nem penses que me vais levar! Não volto para o mato!
Logo a seguir, antes de me pronunciar, bebeu um trago e levou um cigarro à boca libertando uma baforada aromática a maconha que lhe ocultou, momentaneamente, a cara. Estivera sempre nas piores zonas de guerra devido aos castigos que já ultrapassavam duas dezenas. Com isso, tivera agravamentos sucessivos no tempo de comissão que, nessa data, já excedia quarenta meses. Tinha razões de sobra para estar saturado da guerra e, talvez por isso, parecia ausente da realidade que o rodeava. À medida que me ia aproximando, olhava na minha direção, ria-se e, ao mesmo tempo, sussurrava uma canção que nesse momento passava na rádio. Face ao cenário que se me apresentava, deduzi que não iria ser fácil cumprir aquela missão, mas também não queria optar pela alternativa que o Comandante determinou. Aquele homem já tinha sido violentado demasiadas vezes e apenas me limitei a dizer:
-     Aí é que estamos em desacordo! Não posso regressar a Ninda sem ti. Não há outra solução!
-     Estou farto de guerra! Não volto para o mato! Em Ninda só se safa quem andar com os pés às costas. – pegou no copo e saboreou mais uma golada e mal terminou elogiou o puro néctar do Dimple de doze anos, deu uma sentida gargalhada e exclamou:
-     Oh maçarico?! Esquece a ordem e vem beber um copo comigo! Este é do bom e lá não há disto!
Com alguma paciência e perseverança fui desmontando todos os cenários que ele ia criando para se proteger até o convencer a acompanhar-me. Assim, vinte minutos mais tarde, pegou num pequeno saco com bugigangas e partimos, ainda assim, com paragens frequentes para me questionar sobre a situação que iria encontrar e para acender cigarros que só duravam uma fumaça. Logo que chegámos à parada, ao cruzar com um camarada, arranjou um motivo para regressar ao bar para brindarem à despedida. Naquela fase tudo lhe servia de pretexto para tentar protelar a partida, situação a que anuí depois de contar com a colaboração do militar em causa. Assim depois de um brinde rápido chegámos junto das viaturas. Mas aí, logo que o Cacimbado encarou o Comandante tudo se complicou, estacou e disse em voz alta:
-   Comandante?! Eu não vou para o desterro! As Nep’s dizem que numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar sem uniforme camuflado e eu não o tenho!
Nesse momento, o Comandante ordenou ao quarteleiro que lhe entregasse um uniforme camuflado. O Cacimbado dirigiu-se, sem pressas, para a arrecadação, na companhia do quarteleiro, de onde viria a sair vinte minutos mais tarde, enfiado num fato desproporcionado ao seu físico: parecia um espantalho e alguns militares riam-se daquela triste figura.
-  Então? Agora já está tudo bem?! – questionou o Comandante, que esperava no mesmo local, visivelmente impaciente. Todavia, o Cacimbado não tinha pressa e ainda guardava mais um trunfo para jogar, tentando por todos os meios, evitar ir para um local que tanto receava e disse:
-    Saiba V.ª Ex.ª. que, como as Nep’s também dizem, numa zona cem por cento operacional nenhum militar pode andar desarmado.
Aí o Comandante ficou, momentaneamente, indeciso avaliando as consequências que daí poderiam resultar, mas, ao fim de alguns segundos, num repente impulsivo, gritou a plenos pulmões:
-   Oh quarteleiro! Dá uma espingarda a este gajo antes que eu lhe parta os cornos! Este cabrão está a gozar comigo!
Enquanto o quarteleiro se deslocava, em passo de corrida, para a arrecadação, o Cacimbado ficou calado e imóvel no meio de uma assembleia de maçaricos, como ele os chamava. Em poucos segundos recebeu a arma devidamente municiada e, com ela, fez a continência ao Comandante, que retribuiu o cumprimento e questionou num tom vincadamente irónico:
-   Oh furriel?! Agora as Nep´s já não dizem mais nada?
Aquele ignorou a pergunta, virou-lhe as costas, subiu para a carroçaria da viatura e deitou-se sobre a sacaria, a caminho de cumprir mais seis meses de comissão. Durante a viagem colaborou, com a sua experiência e estoicismo, na segurança de todo o pessoal e meios.

Três meses mais tarde, numa noite em que eu pernoitava no aquartelamento de Ninda, despertei ao som de um estalido, caraterístico, provocado pelo manobrador da espingarda G3 para introduzir uma munição na câmara. Talvez por via disso e da intranquilidade que ali se vivia, de imediato, como que impelido por uma mola, saltei da cama, agarrei a arma que me fazia companhia junto à cabeceira e abeirei-me da janela para tentar analisar o que estaria a acontecer. Ao fim de alguns segundos de espera, que nunca mais passavam, concluí que o estridor teria sido obra do Cacimbado em mais uma das suas noitadas de vigia como ele costumava dizer.
Embora aquele homem já tivesse uma longa vivência em cenários de guerra, durante a noite, raramente dormia. Acreditava que um ataque ao aquartelamento estaria eminente e a melhor forma de minimizar as consequências seria estar sempre em alerta para não ser apanhado à mão, como tanto receava que acontecesse. Sem dúvida que um ataque de surpresa enquanto a maioria dos militares descansavam poderia ser devastador. E para isso, segundo pensava, nem seriam precisos muitos meios, bastaria que meia dúzia de elementos IN, munidos de armas brancas, se infiltrassem no aquartelamento, iludindo ou eliminando as sentinelas. Aí, os invasores poderiam tirar vantagem, por vários motivos: desde logo pela fragilidade da vedação, a que se juntava a pouca visibilidade do perímetro exterior do aquartelamento e pelo cansaço dos homens de vigia. Isto, para já nas falar das rotinas que, com o passar do tempo, o dispositivo ia mergulhando. No entanto, talvez por receio do IN, as suspeitas daquele ali, nunca se concretizaram.
Com base nessa possibilidade e para tentar preservar a sua integridade física, o Cacimbado passava as noites no bar, a que chamávamos “escape do guerreiro”, com a espingarda acessível à mão. Bebia, fumava, ouvia música e por vezes, enquanto estava sóbrio também chorava. A música fazia-o levitar e transportava-o à terra distante de onde, apesar da sua oposição ao regime e à guerra, fora arrancado quando frequentava o ensino superior. Contudo, só possuía uma cassete com vinte músicas da banda “the Doors” de Jim Morrison, mas em cada noite não se cansava de as ouvir vezes sem conta. Quando a cassete chegava ao fim de um lado virava-a para o outro. Por vezes, trauteava as canções como se fizesse parte da banda e quisesse afugentar as suas angústias que não paravam de o atormentar. À medida que o tempo se alongava ia ficando mais debilitado, mas nem assim abandonava o posto até chegar a alvorada, momento em que o efetivo disponível começava aos poucos a despertar, como se esperasse pelo render da guarda.
A noite estava quente e os mosquitos nem com repelente deixavam de utilizar o ferrão venenoso. Para molhar a boca seca, abandonei a tarimba e percorri a camarata em silêncio para não despertar outros camaradas que ressonavam em uníssono, depois de uma operação na mata que durara cinco dias e quatro noites. Desta vez foram eles, para a próxima seria o meu grupo de combate a partir para outra zona de intervenção. Agora, quando entrei no bar a música habitual não se fazia ouvir e deparei-me com um ambiente de tal modo saturado que mal se via o espaço interior. No entanto, depois de me adaptar à nuvem de fumo, reparei que as garrafas de cerveja, vazias, ocupavam grande parte da mesa junto ao Cacimbado. Ali, não havia preocupações com a arrumação e a contagem dos consumos estava reservada para o faxina do bar, quando este retomasse ao serviço, na manhã seguinte. Num olhar mais detalhado reparei no Cacimbado que estava com o tronco curvado para a frente com o cano da G3 debaixo do queixo e com um dedo encostado ao gatilho. Assim que se apercebeu da minha presença retraiu-se desmontando, rapidamente, a figura que formava. Parecia estar no limite. A sua fragilidade era notória. O cinzeiro estava cheio de beatas. Fumara dois maços de cigarros Hermínios e perdera a conta ao número às cervejas que bebera, mas continuava ali, e agora parecia que se preparava para levar a cabo um ato tresloucado. Quando o questionei sobre como tinha decorrido a vigia, limitou-se a encolher os ombros, mas, alguns segundos depois, acabaria por dizer:
Estava a experimentar tirar a folga ao gatilho!
Seguidamente, sem comentar o assunto que presenciara, abri a velha geleira a petróleo e retirei duas cervejas, uma para mim, outra para o meu camarada. Embora ele não aparentasse ter sede pensei que talvez fosse a melhor forma de começar um diálogo. Assim aconteceu e ali ficámos a conversar até ao romper da aurora em que a família e a crueldade da guerra foram os temas dominantes.
Habitualmente o Cacimbado era de poucas falas, mas agora tinha resolvido desabafar as suas mágoas. Reconhecia que chegara a um beco sem saída e a sua eternização na guerra encaminhava-o para pôr um termo ao sofrimento. Embora, em situação normal, no seu trato quotidiano, tentasse sobreviver a todo o custo, perder a esperança poderia ser a diferença entre o sobreviver ou ficar pelo caminho. Mas ele tinha razão para recear não mais voltar a casa. Pelo menos enquanto o regime político, então vigente, se mantivesse em funções não teria qualquer solução para a sua vida. Porque, quando um homem caía em desgraça e estava a necessitar de auxílio, alguém se encarregava de o empurrar para o abismo. Como fora o caso dessa vez. Tinha acabado de chegar àquele Destacamento, para onde fora transferido por motivo de punição e já lhe chegavam rumores que brevemente iria ser brindado com mais um castigo por não ter acatado, prontamente, a decisão do Comandante. Era assim naquele tempo! Nessa fase o Cacimbado parecia-me física e psicologicamente derrotado.
No dia seguinte, fui informado de que na próxima madrugada iria partir para a mata, numa operação de cinco dias e o Cacimbado, que havia sido integrado no meu pelotão, também fora escalado. No entanto, quando o informei da situação, respondeu:
-     Amanhã, provavelmente, não posso ir! Estou a ficar muito doente! Isto é paludismo!
Quando se aproximava a hora da partida, o Cacimbado deitou-se na tarimba e mandou chamar o enfermeiro alegando que estava doente. O encarregado dos cuidados de saúde dos militares, naquele fim de mundo, apressou-se a observar o doente e concluiria que ele estava com 41.º de febre. Medicou-o com uma droga qualquer e deu-lhe convalescença, com a indicação de que se a febre, entretanto, não baixasse teria que ser evacuado para o posto médico de Gago Coutinho. Ali, o enfermeiro também era médico. Assim, como o militar previra não partiu para o mato.
 Quando regressámos tive conhecimento que, duas horas após a nossa partida, já estava restabelecido. Logo que tive oportunidade não resisti e questionei-o como conseguira tamanho milagre, ao que me respondeu que, um dia, quando fosse embora, me havia de contar.
Entretanto, algum tempo depois, a revolução de 25 de Abril viria a colocar um ponto final no drama do Cacimbado. A punição, que estava na forja, ficaria sem efeito e já não cumpriu o resto do tempo que faltava para terminar a comissão, regressando mais depressa a casa. Mas, na hora da partida, disse-me que quando queria ficar com febre se limitava a introduzir um dente de alho no rabo e logo que retirasse a febre passava. Nunca mais soube nada dele.