Poço de Pé Carvalho, com os antigos moinhos encarrapitados nos rochedos contíguos.
MOINHOS DE ÁGUA - Obreiros de outros tempos
Em muitas localidades serranas, os moinhos de
água serviram muitas gerações de moleiros e foram palco de inúmeras histórias
de vida que, mais tarde, preenchiam os serões da aldeia e prendiam a atenção dos
mais novos. Algumas reais que ilustravam as agruras dos moleiros, ocasionais,
carregando os cereais por incontáveis precipícios que não passavam de carreiros
rudes, por veredas e piçarros quase inacessíveis às cabras e muito menos a
gente feita burro de carga. Carreiros que começavam logo à saída dos povoados e
se prolongavam até aos moinhos que, como era o caso dos do Pé Carvalho, Pampilhosa da serra, distavam cerca de quatro quilómetros. Outras histórias não passavam de fruto da
imaginação dos moleiros relatando medos e encantamentos ou situações insólitas com abordagem
do sobrenatural. Situações passadas quase sempre à noite, onde supostas bruxas aproveitando a escuridão e os locais ermos, sem horizontes, geralmente afundados
entre montanhas, se divertiam a encravar e desencravar os moinhos com a
finalidade de exasperar os pobres dos moleiros. Esses, impotentes perante a
proximidade das imaginárias criaturas do além refugiavam-se em exorcismos que
julgavam apropriados à situação e que, algumas vezes, duravam até ao nascer do
dia momento em que todos esses medos se dissipavam.
O que sobra dos moinhos.
A propósito dessas situações insólitas, o Ti
António contava o que lhe acontecera certa noite em que pernoitara no moinho de
Pé Carvalho para moer dois alqueires de milho.
Nessa ocasião, segundo contava, logo que chegou
ao moinho apressou-se a coloca-lo a trabalhar para que a chegada do crepúsculo
não lhe dificultasse o acerto da moagem. Assim, depois de concluir que a farinha estava a seu gosto, em termos de espessura, saiu a rua para apanhar um pouco de
lenha para a fogueira e mato para improvisar uma espécie de colchão. De regresso ao moinho, logo que a escuridão caiu sobre aquele
vale sombrio, preparou a tarimba no espaço disponível ao
lado da tremonha. Depois, com a ajuda de uma moita, ateou os troncos de madeira como forma de afugentar ratos e répteis que, por vezes, se movimentavam pelas paredes dos moinhos. Por fim, trancou a porta pronto para se acomodar. Não era um homem medroso, mas não podia
esquecer que estava sozinho naquele ermo e nunca seria demais prevenir-se dado
que, na época, pela região, o pão era escasso e os furtos de cereais eram frequentes. Por fim, como que embalado pelo crepitar da fogueira, acendeu um cigarro e bebeu um trago de alcoviteira de
medronho para lhe ajudar a passar o tempo, mas logo que se deixou cair sobre o
colchão improvisado o moinho encravou. A surpresa gelou a alma do Ti António. Já não tinha farinha para cozer a broa e regressar a casa com o milho era uma possibilidade que o atormentava. Então, havia que meter mãos à obra até esgotar as suas capacidades em termos de reparação. Para o tentar desencravar, levantou e baixou, várias vezes, a
mó com a ajuda do pau das cunhas e nem sinal de movimento. Logo a seguir, saiu à rua, munido de uma tocha,
para observar a cale e verificou que estava cheia de água. Em face disso, pouco
havia a fazer, mas, pelo sim pelo não, desceu ao leito da ribeira tentando verificar o que havia acontecido. Logo que se enquadrou com a abertura destinada ao rodizio o moinho arrancou a toda a velocidade ao ponto do Ti António ter sido atingido pelo jato de água libertado pelo movimento da turbina. Quando se preparava para entrar no moinho aquele voltou a encravar. Tudo aquilo acompanhado de gargalhadas estridentes
que, ecoaram pela ribeira e, lhe gelaram o espirito. O Ti António para tentar fugir ao
abismo de emoções em que ficara mergulhado, gritou e praguejou em todas as
direções até ficar totalmente exausto. Por fim, vencido e impotente perante a
adversidade, recolheu ao moinho, trancou a porta, espevitou a fogueira, bebeu
mais um trago de aguardente e atirou-se sobre as carquejas indiferente à dureza
do colchão. Logo a seguir, sem que nada o fizesse prever, o
moinho voltou a funcionar, agora, sem mais paragens, até terminar a moagem.
Os moinhos eram edificados em pedra nua de xisto ao
longo das margens serpenteadas das ribeiras bordadas, aqui e acolá, por caprichados
lameiros de semeadura, ideais para o cultivo de milheirais. Em meados do século XX, na aldeia de
Carvalho, talvez uma das maiores produtoras de milho do concelho da Pampilhosa
da Serra, existiam doze moinhos de água de utilização comunitária e dois ou três particulares. A utilização comunitária era regulada individualmente
através de uma adua, materializada num determinado número de dias ou horas
mensais. Situação que não deixava de gerar conflitos entre os usuários, aquando
da utilização abusiva ou menos cuidada na conservação. Bastava que qualquer
dos deles ultrapassasse os tempos de utilização para logo prejudicar terceiros.
Qualquer descuido que deixasse o moinho a trabalhar sem cereal, era suficiente para
que as mós de moer o pão ficassem danificadas, dando assim origem a paragens
com que não contavam, ao que acrescia a despesa da picagem das mós.
Enquanto a água corria com abundancia pelas
ribeiras, normalmente, durante o inverno até meados da primavera, os moinhos
trabalhavam sem descanso, dia e noite. Fora dessa época ou durante longos
períodos de estio tudo se tornava mais problemático atendendo a que, para além
da redução natural dos caudais, o precioso líquido era utilizado na rega dos
milheirais e noutras novidades hortícolas. Em função disso a corrente de água,
que restava, mal dava para oxigenar trutas, bordalos e enguias que, só muito a
custo, se iam esgueirando por entre as pedras e muito menos para fazer mover os
moinhos que só trabalhavam com a cale cheia. Assim, só à noite, com a pausa nas
regas era possível moer algum cereal. Situação que obrigava, quem necessitasse
de farinha, a passar a noite nos moinhos para controlar a moagem face à
constante alteração dos caudais. Como era o caso dos moinhos do Pé Carvalho
que, atendendo a todas essas contingências a que se juntava a dificuldade de
acesso, obrigava a que os moleiros ali passassem a noite em condições muito
precárias. Mas a necessidade do pão falava mais alto.
Durante séculos, essas
moendas foram o melhor processo de transformar os cereais em farinha. Concretamente,
de milho, trigo e centeio, tão necessária à cozedura da broa, indispensável na alimentação
das gentes serranas onde, em alguns lares, por falta de outros meios, a comiam
quase sem condimentos.
Quando a água não permitia
moer os cereais numa determinada localidade, as populações procuravam um moinho,
onde quer que funcionasse, independentemente da distância e sujeitando-se à
maquia que lhes fosse exigida. Como era o caso das gentes de Carvalho que,
confrontados com a falta de farinha, chegavam a ir a Alvares para moer um saco
de milho. Percorriam mais de dez quilómetros, carregados como burros, por não
haver noutro lugar mais próximo a possibilidade de o fazer.
Hoje, como é sobejamente
sabido, os tempos são outros e os moinhos de água perderam a importância que
tinham naquela época e como não podia deixar de ser, seguiram a mesma trajetória
decadente das terras de semeadura que foram deixadas em pousio. O que não deixa
de ser compreensível pois, atendendo a vários fatores onde se inclui a
desertificação e a idade avançada dos poucos residentes que ainda vão restando,
tornou-se impossível a preservação de todo esse património histórico, bem como
o proceder à limpeza das ribeiras, levadas e açudes, como era feita noutros
tempos. Assim, depois de muitos anos deixados ao abandono, as estruturas ruíram
e as peças com algum valor, como as mós de moer o pão, rumaram a outras
paragens onde passaram a ser usadas como meros objetos decorativos. Por via
disso, de muitos desses moinhos pouco mais resta do que os escombros e estes,
ainda assim, tem sido devorados pela vegetação selvagem que, junto às linhas de
água, atingiu proporções quase impenetráveis. Só agora, depois dos incêndios,
em alguns locais, é possível ter acesso ao que resta deles. Uma situação que
para além de trágica acabaria por, de certo modo, ser benéfica por deixar à
vista esses pedaços de história.
Agora, resta aguardar que a natureza viva se
refaça e os homens se encarreguem da limpeza das ribeiras, açudes e levadas que
as espécies piscícolas muito iriam beneficiar.
Abandono e decadência