quinta-feira, 17 de novembro de 2016

VALE DO ALTO CEIRA

Situado nas fraldas da Serra do Açor, o Vale do Alto Ceira, a par de uma considerável mancha florestal, tem uma paisagem a perder de vista.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O FOGUETE INESQUECÍVEL


Foi na Ribeira de Carvalho que Januário aprendeu a nadar e a distinguir as várias espécies piscícolas que coabitavam naquelas águas frias e límpidas que, quilómetros a jusante, engrossavam o caudal do Zêzere. Tinha apenas sete anos quando começou a chefiar um bando de potenciais nadadores, todos do seu escalão etário, e todos nascidos na mesma aldeia, num tempo em que a natalidade ainda não estava em decréscimo. Deixavam o terreiro onde jogavam à bola e encaminhavam-se para o poço da Foz da Costa, que se situava no sopé da povoação e afastado das casas mais de quinhentos metros. Embora se deslocassem ali muitas vezes durante o ano, era no verão, nas férias grandes, que faziam uma aprendizagem mais intensiva e por muito que os pais lhes atribuíssem funções de apoio à atividade agrícola eles acabavam sempre por ir lá dar um mergulho.
Era naquela piscina natural, de leito rochoso, que organizavam campeonatos de natação como uma verdadeira competição em que as provas consistiam em nadar ao desafio, de uma margem para a outra, para ver quem chegava primeiro. Por vezes, mergulhavam para concluir qual deles se aguentava mais tempo debaixo de água. Paralelamente a isso, também se dedicavam à pesca tanto à linha como à mão, de trutas, enguias e bordalos. Quando pescavam à mão mergulhavam e vasculhavam as tocas, uma a uma, para capturar os peixes que se abrigavam em incontáveis esconderijos. Nem os alfaiates, minúsculos insetos pernaltas, que se movimentavam livremente à superfície sem nunca se afundarem, se conseguiam furtar a toda aquela agitação.
No dia em que Januário foi aprovado, com distinção, no exame da quarta classe, na década de cinquenta do século passado, recebeu, do seu padrinho, um porta-moedas recheado com uma nota de vinte escudos. Embora se tratasse de uma razoável quantia para a época, era uma lembrança merecida atendendo ao seu bom aproveitamento ao longo dos quatro anos de vida escolar que ditava a sua transferência para a cidade a fim de continuar os estudos no Ciclo Secundário. 
Assim que viu a sua nota de aprovação afixada na vitrina não cabia em si de contente pelo culminar daquela etapa. Então, logo que se achou na posse da dádiva, correu à mercearia do ti Álvaro onde comprou três foguetes e uma caixa de fósforos. Depois de pedir, àquele, uma opinião sobre o local mais adequado para o lançamento meteu-se a caminho como um verdadeiro perito em pirotecnia. Durante a festa da sua aldeia vira, com muita atenção, como o fogueteiro fazia o lançamento e achava que esse conhecimento seria suficiente. 
Quando se preparava para levar por diante os seus intentos e acender o primeiro rastilho, os comparsas que o acompanhavam deram-lhe outra sugestão e Januário resolveu pensar duas vezes antes de lançar os foguetes. Assim, depois de estudar o que aqueles lhe sugeriam, acabaria por concordar dar à pirotecnia uma utilização diferente.  
Na tarde do dia seguinte, os garotos partiram para o seu habitual mergulho no Poço, munidos dos foguetes e prontos a por em prática aquilo que tinham acordado. Durante o itinerário, aproveitando o silêncio da hora da sesta, apenas quebrado pelo canto da cigarra, iam debicando os vagos de uva que cresciam nos parreirais, a par de outros frutos da época: pêssegos, peras e ameixas, que começavam, aos poucos, a amadurecer despertando a curiosidade, e o paladar, dos pequenos e até dos adultos. De quando em vez surgiam frases soltas, em sussurro, no meio do bando: “estes cachos já estão doces”, “estas peras são boas”, “os pêssegos já estão maduros”, “tenham cuidado que o ti Joaquim pode estar à espreita”. Era normal, logo que chegava o pintor, os proprietários, quase sempre de idade avançada, exerciam maior vigilância sobre os pomares, mas a garotada levava quase sempre os seus intentos por diante perante a impotência daqueles. 
Naquele dia, o Sol escaldava e a rega dos milheirais absorvia quase todo o caudal da ribeira dificultando, assim, o movimento dos peixes que, nos locais com menor profundidade, não conseguiam contornar as pedras, juncos e embude. Mas para os garotos, isso não era obstáculo, antes pelo contrário, caminhavam pelo areal com maior desenvoltura e apanhavam muitos bordalos que ficavam encurralados em pequenos charcos ao longo daquele curso de água. 
Assim que chegaram ao poço e se abeiraram do açude secular, edificado em pedra de xisto sobre estacaria de pinho, a água fervilhava de trutas que assustadas pela proximidade da troupe rapidamente se refugiaram numa abertura sob o paredão. Aquela agradável visão, pela quantidade de salmonídeos, ainda, gerou no grupo maior entusiasmo e Januário, pondo em evidência a sua condição de líder, decidiu, de imediato, fazer ali um rebentamento. Tratava-se de uma toca que, apesar de se situar a mais de dois metros de profundidade, era perfeitamente visível das margens do poço na época de verão.
Com a desenvoltura que os caraterizava, treparam a um salgueiro que crescia entre a ribeira e as terras de semeadura e colheram uma vara com o comprimento suficiente para chegar à abertura escolhida. Depois, Januário, o mais irreverente do bando, amarrou, com atilhos de junco, a cana do foguete à vara, acendeu o rastilho e mergulhou o conjunto na água avançando em direção ao local que pretendia atingir com a detonação. Assim que o engenho explosivo ficou submerso, o atilho cedeu à pressão da água e do rastilho. Então, aconteceu aquilo que eles não contavam: o foguete libertou-se da vara e ficou a voar, completamente desgovernado, à volta do poço. Só decorridos alguns segundos, ganhou equilíbrio e retomou a finalidade para que fora concebido. Ainda assim, deixou a água debaixo de uma densa nuvem de fumo e cheiro a pólvora. Mas, entretanto, como havia decorrido demasiado tempo o foguete subiu, apenas, alguns metros e desintegrou-se, libertando bombas em todas as direções. As explosões sucediam-se a um ritmo quase sem intervalo e com tal intensidade que os garotos, autores da proeza, ficaram de tal modo desorientados que desataram numa correria infernal, milheiral adentro, derrubando as canoulas, com dois metros de altura, que se lhes deparavam pela frente. 
Logo que terminaram os rebentamentos, que ecoaram ao longo das quebradas em redor, o bando começou aos poucos a reagrupar junto ao poço onde foram surpreendidos pelo Ti Justino que, meio aturdido, abandonou o lameiro contiguo, onde se ocupava da rega, para indagar o sucedido. Aquele, depois de se inteirar do que acontecera, em jeito de corretivo, ameaçou denunciá-los. Os garotos, um pouco cabisbaixos, depois de terem escondido os dois foguetes que sobraram, encaminharam-se para o povoado mais cedo do que o habitual.  



sexta-feira, 1 de julho de 2016

TEMPOS DE PENÚRIA







Uma década após o fim da segunda guerra mundial a recuperação económica em Portugal ainda não era notória e algumas franjas da população continuavam mergulhadas em profunda agonia. Apesar de haver muito trabalho os salários eram tão baixos que, mesmo trabalhando de sol a sol, mal davam para a alimentação.
Nessa época, Miguel Estudante tinha onze anos e era o mais velho de nove irmãos, cinco rapazes e quatro raparigas. Frequentava a segunda classe sem perspetiva, nesse ano, de passar para a terceira. Apesar do corpo franzino não indicar a sua idade era desenrascado e vivaço, fruto de uma vivência conturbada própria do meio destruturado em que nascera. Morava com a família, numa pequena barraca, sem as mínimas condições de habitabilidade. O pai, operário fabril especializado, tornara-se um alcoólico inveterado, com total desprezo pelas necessidades familiares. Só trabalhava quando lhe apetecia e em contrapartida não se cansava de engravidar a esposa que pouco mais fazia do que procriar e a um ritmo que quase não lhe deixava tempo para cuidar de quem trazia ao mundo.
Em função disso, todos os filhos do casal passavam por muitas carências dado que naquele tempo o apoio social não levava em conta as necessidades do cidadão e quando a fome apertava cada um desenrascava-se como podia. Os que estavam em idade escolar faltavam muitas vezes às aulas para pedir e roubar, tudo o que fosse comestível, fruta e hortícolas.
Num dia de março, ao cair da noite, o progenitor de Miguel Estudante chegou a casa, mais uma vez, embriagado e quando os vapores do álcool lhe esquentavam a cabeça não era preciso muito para distribuir pancada, tanto pela mulher como pelos filhos. Dessa vez, o desentendimento surgiu a pretexto de uma queixa que o professor lhe fizera relativa ao Miguel e vai daí, deu-lhe uma tareia sem dó nem piedade. A mãe ainda tentou proteger o filho, que no meio da crise era o esteio da família, mas levou pela mesma tabela. Os restantes escaparam ilesos, porque os mais crescidos conseguiram escapar a tempo e os pequenitos esconderam-se num canto do casebre até os ânimos serenarem.
Na manhã seguinte, Miguel Estudante levantou-se com o corpito dorido. As hematomas eram bem visíveis, tanto na cara como no tronco. A fome e as dores não o deixaram pregar olho a noite toda. Nada a que já não estivesse habituado, tanto na escola como em casa, só que agora o castigo fora muito severo.
Como não conseguia dormir saltou bem cedo da tarimba que partilhava com os irmãos. Tinha os olhitos inchados de tanto chorar e o estômago a reivindicar comida. Vestiu roupita aligeirada, pegou na sacola escolar, feita de pedaços de cotim, onde guardava: um par de tamancos para utilizar à entrada da escola, o livro da segunda classe que pertencera a uma antiga aluna sua vizinha, um caderno de linhas, giz e o pequeno quadro de ardosia, onde aprendera a rabiscar as primeiras letras e algarismos e, logo a seguir, partiu.
Ao abandonar a barraca bateu a porta com força numa espécie de represália perante o pai castigador que de imediato ripostou do interior: "Oh malvado! Tu queres brincar comigo, mas logo apanhas mais!" Para não agravar a sua difícil situação, o garoto prosseguiu o caminho que programara, sem olhar para trás nem responder, em direção ao extenso laranjal que matizava de branco, verde e laranja a margem direita do Mondego. Ali, com o cuidado que lhe era peculiar, passou um olhar por toda a área do seu horizonte visual e, quando concluiu que tinha o terreno livre, trepou a uma laranjeira onde colheu uma dezena de laranjas. Assim que desceu diluiu-se na caniça, que crescia frondosa junto ao rio, para não ser notado enquanto enchia a barriguita faminta. Quando se achou satisfeito, guardou as que sobraram na sacola e continuou a caminho da escola.
À semelhança dos irmãos, Miguel Estudante andava sempre descalço e as cicatrizes nos dedos dos pés documentavam muitos tormentos. Mesmo ali, ao cruzar a estrada do campo, deu uma topada numa pedra mais saliente que lhe provocou dores insuportáveis e uma unha de um dedo do pé parcialmente arrancada. Como se a agonia que o acompanhava, desde a véspera, já não fosse suficiente, ainda se viu a contas com mais aquele acidente. Não aguentou, sentou-se no chão de lágrimas nos olhos pressionando o dedo aleijado tentando, tanto quanto possível, estancar a hemorragia e minimizar o sofrimento.
Logo que se recompôs retomou a marcha a coxear, deixando, aqui e acolá, uma mancha de sangue que lhe ia escorrendo do dedo. Ainda tentou utilizar os tamancos, mas logo reconheceu que lhe dificultavam os movimentos e voltou a guarda-los na sacola. Apenas os trazia consigo porque o professor não lhe permitia que entrasse na escola descalço. De repente, lembrou-se dos deveres que não fizera e estacou aterrorizado. Apesar de já estar familiarizado com a disciplina escolar, nunca conseguia prever qual seria a reação do professor, face à falha de um aluno. Especialmente com ele que faltava muitas vezes e era conhecido na escola pelo seu comportamento irreverente. De facto, nunca podia esperar qualquer tolerância ainda que justificada. Sempre que prevaricava a resposta do docente não se fazia esperar e quando tocava a bater não era nada meigo. Então, depois de refletir, decidiu faltar às aulas e no dia seguinte justificar a falta com uma desculpa qualquer, pelo menos, se não fosse atendido, adiava a punição.
Assim, Miguel Estudante esqueceu rapidamente a escola e caminhou em direção ao rio. Logo que ali chegou, pegou numa cana de pesca que guardara na caniça, procurou isco na ínsua e entregou-se à luta em busca da refeição. Não era só a falta de vocação para as letras que o levava a fugir da escola, as carências alimentares também pesavam e de que maneira.
A pesca para ele não era um divertimento, mas uma forma de arranjar alguma coisa para enganar o estomago. Por isso, ali, esquecia facilmente o mau vício do pai, os deveres que trazia para fazer em casa e os castigos que professor lhe aplicava. Só a fome teimava em o acompanhar para qualquer sítio que fosse.
Por capricho da natureza, a pescaria nesse dia iria correr bem. Os barbos e as bogas, naquela fase do ano, próximo da desova, pegavam no isco com relativa facilidade e ele sabia tirar partido disso. Assim, acendeu uma fogueira no areal perto da água e grelhou alguns exemplares que mesmo sem sal lhe souberam ao melhor pitéu.
Dias mais tarde, durante as aulas, em sequência de uma pergunta a que não soube responder, o professor sentenciou-o, mais uma vez, a dez reguadas em cada mão. Foi o transbordar do copo, já não aguentava tanta tareia, nem sequer podia ver o ponteiro de marmeleiro que muitas vezes lhe vergastava as costas e muito menos a palmatória que, era feita em madeira de carvalho francês e, magoava que se fartava. Tinha que fazer alguma coisa para deixar, bem clara a sua revolta, de apanhar pancada por tudo e por nada, ao ponto de ser o bombo da classe.
Em função disso, logo que o castigo lhe foi aplicado, no seu habitual estilo rebelde, aproximou-se da carteira onde se sentava, pegou no tinteiro metálico de caneta de aparo, ali instalado, e atirou-o, com toda a força que pode imprimir, à cabeça do docente que, ao ser atingido, ficou estonteado pela dor e pela surpresa. Logo a seguir, antes que aquele lhe pudesse deitar a mão desatou a correr e saiu porta fora. Nessa noite não dormiu em casa, acomodou-se numa barraca abandonada junto ao rio que era o seu refúgio habitual quando desconfiava que vinho do pai se iria entornar para o seu lado.
Entretanto, em sequência da queixa apresentada pelo professor à direção escolar, relativa à agressão de que fora vítima, Miguel Estudante foi enviado para o colégio da tutoria de menores, onde permaneceu três meses, em regime fechado e sob regras rígidas de disciplina. Ali, perdeu o privilégio de fazer o que lhe apetecia, mas em contra partida deixou de passar fome, calçou os primeiros sapatos e vestiu uma farda devidamente limpa e engomada. Finalmente, começava a perceber que não podia fugir à disciplina que lhe era imposta, mas não iria ser fácil controlar e seu temperamento rebelde.
Logo que terminou o castigo regressou às origens e à vida libertina que levava até então que se dividia entre pedir esmola de porta em porta e roubar. Tudo em busca de alimentos. Até parecia de que nada lhe valera aqueles meses de corretivo, mas a realidade era bem mais cruel, atendendo a que as necessidades falavam mais alto. Como não podia deixar de ser, ao fim de pouco tempo, voltaria a ter complicações.
Certa madrugada, a fome apertava e a barraca fervilhava em constante desassossego. Então, Miguel Estudante pegou num cesto de verga e partiu em busca de alguma coisa com que pudesse alimentar os irmãos. Ao chegar junto à Quinta dos Muros não viu ninguém por perto e tratou logo de engendrar uma forma de esventrar a rede de vedação para ir em busca de algum produto comestível. Já no interior, começou por arrancar batatas e terminou a apanhar uvas. Mal encheu o recipiente apressou-se a abandonar o local, receando que surgisse algo com que não contava. Até ali tudo correu bem, no entanto, quando se esgueirava pelo buraco que abrira foi surpreendido pelo proprietário que lhe barrou a passagem. Até parecia que já o esperava como cão espera o coelho à porta da toca. O garoto bem lutou para se libertar, mas aquele agarrou-o pelo cabelo com tal determinação que não lhe deu qualquer possibilidade de fuga. Então, não satisfeito com os acoites que lhe aplicara, conduziu-o até ao casebre onde Miguel morava para exigir uma indemnização ao pai, de prejuízos e atrevimento, de tal modo avultada que impossibilitou qualquer pagamento. Tudo isso sem levar em conta que se tratava de uma família indigente sem condições económicas para alimentar tantas bocas. Como não foi ressarcido correu a entrega-lo à polícia alegando que não lhe podia perdoar dado que estava cansado das visitas dos larápios.
Em sequência desse pequeno golpe, Miguel Estudante foi reencaminhado para a tutoria por mais algum tempo. Sendo posteriormente enviado para um colégio de correção na capital, onde permaneceu até atingir os dezoito anos de idade. Ali, para além da profissão de encadernador, apreendeu a ser homem.