Foi na Ribeira de Carvalho que Januário aprendeu a nadar e
a distinguir as várias espécies piscícolas que coabitavam naquelas águas frias
e límpidas que, quilómetros a jusante, engrossavam o caudal do Zêzere. Tinha
apenas sete anos quando começou a chefiar um bando de potenciais nadadores,
todos do seu escalão etário, e todos nascidos na mesma aldeia, num tempo
em que a natalidade ainda não estava em decréscimo. Deixavam o terreiro onde jogavam
à bola e encaminhavam-se para o poço da Foz da Costa, que se situava no
sopé da povoação e afastado das casas mais de quinhentos metros. Embora se
deslocassem ali muitas vezes durante o ano, era no verão, nas férias grandes,
que faziam uma aprendizagem mais intensiva e por muito que os pais lhes
atribuíssem funções de apoio à atividade agrícola eles acabavam sempre por ir
lá dar um mergulho.
Era naquela piscina natural, de leito rochoso, que
organizavam campeonatos de natação como uma verdadeira competição em que as
provas consistiam em nadar ao desafio, de uma margem para a outra, para ver
quem chegava primeiro. Por vezes, mergulhavam para concluir qual deles se
aguentava mais tempo debaixo de água. Paralelamente a isso, também se dedicavam
à pesca tanto à linha como à mão, de trutas, enguias e bordalos. Quando
pescavam à mão mergulhavam e vasculhavam as tocas, uma a uma, para capturar os
peixes que se abrigavam em incontáveis esconderijos. Nem os alfaiates,
minúsculos insetos pernaltas, que se movimentavam livremente à superfície sem
nunca se afundarem, se conseguiam furtar a toda aquela agitação.
No dia em que Januário foi aprovado, com distinção, no
exame da quarta classe, na década de cinquenta do século passado, recebeu, do seu
padrinho, um porta-moedas recheado com uma nota de vinte escudos. Embora se
tratasse de uma razoável quantia para a época, era uma lembrança merecida atendendo
ao seu bom aproveitamento ao longo dos quatro anos de vida escolar que ditava a
sua transferência para a cidade a fim de continuar os estudos no Ciclo
Secundário.
Assim que viu a sua nota de aprovação afixada na
vitrina não cabia em si de contente pelo culminar daquela etapa. Então, logo
que se achou na posse da dádiva, correu à mercearia do ti Álvaro onde comprou
três foguetes e uma caixa de fósforos. Depois de pedir, àquele, uma opinião
sobre o local mais adequado para o lançamento meteu-se a caminho como um verdadeiro
perito em pirotecnia. Durante a festa da sua aldeia vira, com muita atenção,
como o fogueteiro fazia o lançamento e achava que esse conhecimento seria
suficiente.
Quando se preparava para levar por diante os seus
intentos e acender o primeiro rastilho, os comparsas que o acompanhavam
deram-lhe outra sugestão e Januário resolveu pensar duas vezes antes de lançar
os foguetes. Assim, depois de estudar o que aqueles lhe sugeriam, acabaria por concordar
dar à pirotecnia uma utilização diferente.
Na tarde do dia seguinte, os garotos partiram para o seu habitual
mergulho no Poço, munidos dos foguetes e prontos a por em
prática aquilo que tinham acordado. Durante o itinerário, aproveitando o
silêncio da hora da sesta, apenas quebrado pelo canto da cigarra, iam debicando
os vagos de uva que cresciam nos parreirais, a par de outros frutos da época:
pêssegos, peras e ameixas, que começavam, aos poucos, a amadurecer despertando a
curiosidade, e o paladar, dos pequenos e até dos adultos. De quando em vez
surgiam frases soltas, em sussurro, no meio do bando: “estes cachos já estão doces”,
“estas peras são boas”, “os pêssegos já estão maduros”, “tenham cuidado que o
ti Joaquim pode estar à espreita”. Era normal, logo que chegava o pintor, os
proprietários, quase sempre de idade avançada, exerciam maior
vigilância sobre os pomares, mas a garotada levava quase sempre os seus intentos por diante
perante a impotência daqueles.
Naquele dia, o Sol escaldava e a rega dos milheirais
absorvia quase todo o caudal da ribeira dificultando, assim, o movimento dos
peixes que, nos locais com menor profundidade, não conseguiam contornar as
pedras, juncos e embude. Mas para os garotos, isso não era obstáculo, antes
pelo contrário, caminhavam pelo areal com maior desenvoltura e apanhavam muitos
bordalos que ficavam encurralados em pequenos charcos ao longo daquele curso de
água.
Assim que chegaram ao poço e se abeiraram do açude
secular, edificado em pedra de xisto sobre estacaria de pinho, a água
fervilhava de trutas que assustadas pela proximidade da troupe rapidamente se
refugiaram numa abertura sob o paredão. Aquela agradável visão, pela quantidade
de salmonídeos, ainda, gerou no grupo maior entusiasmo e Januário, pondo em
evidência a sua condição de líder, decidiu, de imediato, fazer ali um
rebentamento. Tratava-se de uma toca que, apesar de se situar a mais de dois
metros de profundidade, era perfeitamente visível das margens do poço na época
de verão.
Com a desenvoltura que os caraterizava, treparam a um
salgueiro que crescia entre a ribeira e as terras de semeadura e colheram uma
vara com o comprimento suficiente para chegar à abertura escolhida. Depois,
Januário, o mais irreverente do bando, amarrou, com atilhos de junco, a cana do
foguete à vara, acendeu o rastilho e mergulhou o conjunto na água avançando em
direção ao local que pretendia atingir com a detonação. Assim que o engenho
explosivo ficou submerso, o atilho cedeu à pressão da água e do rastilho.
Então, aconteceu aquilo que eles não contavam: o foguete libertou-se da vara e
ficou a voar, completamente desgovernado, à volta do poço. Só decorridos alguns
segundos, ganhou equilíbrio e retomou a finalidade para que fora concebido.
Ainda assim, deixou a água debaixo de uma densa nuvem de fumo e cheiro a
pólvora. Mas, entretanto, como havia decorrido demasiado tempo o foguete subiu,
apenas, alguns metros e desintegrou-se, libertando bombas em todas as direções.
As explosões sucediam-se a um ritmo quase sem intervalo e com tal intensidade que
os garotos, autores da proeza, ficaram de tal modo desorientados que desataram
numa correria infernal, milheiral adentro, derrubando as canoulas, com dois
metros de altura, que se lhes deparavam pela frente.
Logo que terminaram os rebentamentos, que ecoaram ao
longo das quebradas em redor, o bando começou aos poucos a reagrupar junto ao
poço onde foram surpreendidos pelo Ti Justino que, meio aturdido, abandonou o lameiro contiguo, onde se ocupava da rega, para indagar o sucedido. Aquele,
depois de se inteirar do que acontecera, em jeito de corretivo, ameaçou
denunciá-los. Os garotos, um pouco cabisbaixos, depois de terem escondido os
dois foguetes que sobraram, encaminharam-se para o povoado mais cedo do que o
habitual.
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