quarta-feira, 4 de março de 2015

REENCONTRO COM VELHOS AMIGOS



Naquele dia, Carlos Serra chegou ao cantinho da aldeia de origem um pouco depois do nascer do sol e logo que se ataviou optou por um passeio de manutenção aplicada. Uma caminhada pelo monte, em passo rasgado, que não passava de uma forma simples de exercitar o físico e a mente, saboreando o convívio com a natureza agreste. Sempre que a vida lho permitia, fazia uma pausa nos seus afazeres quotidianos e repetia a viagem ao reencontro de velhos amigos: campos, riachos e serranias escarpadas. Os seus níveis de colesterol estavam um pouco descontrolados e havia que tomar alguns cuidados para contrariar o sedentarismo que levava na cidade.
Em cada dia que passa, a desertificação vai contribuindo, de forma irreversível, para alterar a paisagem serrana. Assim, sob um cenário em que muitos terrenos de semeadura se encontravam ocupados por vegetação selvagem, enveredou por um trilho de cabras agora utilizado, quase em exclusivo, por raposas, veados e javalis. Às primeiras passadas apercebeu-se de que não iria ser fácil desbravar o caminho repleto de arbustos daninhos que lhe surgiam pela frente, mas continuou mais determinado do que nunca, pronto a percorrer os  cerca de cinco quilómetros do percurso a que se propusera. 
Enquanto se deslocava ao longo de um velho riacho, ladeado por courelas que outrora foram o sustento de muitas gerações, usufruiu da companhia de um milhafre que, pairava no ar, a baixa altitude, descrevendo círculos suaves de observação. Buscava na distração de um qualquer exemplar das espécies cinegéticas menores a sua refeição. Contudo, à medida que o tempo vai passando, será cada dia mais difícil encontrar presas para a sua dieta. O abandono das terras de semeadura vai contribuindo para o desaparecimento das espécies de que aqueles predadores se alimentam.
Os velhos amigos de Carlos Serra eram toda àquela natureza verdejante, salpicada, aqui e acolá, por pequenos povoados, onde o sossego, ar puro e águas cristalinas, ainda iam resistindo à poluição e à agitação dos tempos modernos. Era naquela paisagem arrebatadora, carregada de misticismo, com marcas de muitos séculos de história, que experimentava um sentimento de liberdade inigualável, contrastando com a constante inquietude própria do bulício da cidade. Todo aquele espaço ondulado acessível ao olhar, que se estendia por montes e vales, lhe era familiar. Por onde quer que andasse não parava de esbarrar em recordações de infância recheadas de peripécias. Memórias do tempo de criança onde fora crescendo em liberdade e a par de vivências felizes, também, enfrentara adversidades que viriam a constituir uma sã aprendizagem para a vida.
Foi naquele cenário que aprendeu a valorizar as coisas simples da vida e a pacatez do ambiente rural sustentado no trabalho, na moralidade e no respeito em sociedade. Entre outras coisas, construiu os seus próprios brinquedos apoiado na imaginação e livre criatividade. Aprendeu a trabalhar a terra bem como o tempo e métodos de semeadura das diversas espécies agrícolas. Também aprendeu a distinguir as constelações que cintilavam no firmamento, visíveis, em noites de breu. Na água fria das ribeiras, onde o piedoso lamento dos moinhos de moer o pão se misturava com o eterno sussurro da corrente, aprendeu a nadar e a pescar as várias espécies piscícolas que por ali habitavam. Foi naquele lugar que aprendeu a distinguir as diversas espécies cinegéticas que não paravam de danificar as culturas cerealíferas. Foi também ali que frequentou a escola pela primeira vez.
Embora, tudo isso, já fizesse parte de um passado distante, no seu espírito, essas memórias, continuavam tão presentes como se o tempo, entretanto, não tivesse passado. Agora, visitava as serranias sempre que podia, como que atraído por uma força superior que na realidade não passava de um rasgo de saudade daqueles tempos idos.



segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

ESCULTURA NATURAL


 
É UMA ESCULTURA NATURAL,
COM UM DESIGN INVULGAR,
MAS O CENÁRIO É BEM REAL,
É A NATUREZA A GELAR.


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

BATUQUE NA COMUNA DO SESSA


Ao início da manhã, num palco assente em terra batida, três tambores de tamanhos diferentes, forrados a pele de cabra, davam som ao batuque. Das mãos ágeis de cada músico saíam as notas que anunciavam o começo da festa. À medida que a população ia despertando ao som que lhe entrava pelos quimbos dentro convergia para o local onde habitualmente se reunia em dias de festa. O recinto situava-se sob a ramagem de eucaliptos gigantescos que iam coando o sol abrasador que, naquela época do ano, se acentuava sobre a região. Estava na hora de festejar um casamento na Comuna do Sessa. Uma sanzala perdida, algures, no meio da selva, numa clareira que se situava entre a colina e o rio Sessa, longe do essencial para a vida dos seus habitantes.
As moças, ainda virgens, “cafecos” como lhe chamavam, foram as primeiras a chegar. Vestidas com roupas de cores garridas e ornamentadas com colares e pulseiras de missanga, no pescoço, nos braços e nas pernas, abanavam as ancas com movimentos frenéticos, numa incessante dança erótica, mostrando os seus dotes aos jovens disponíveis da aldeia.
Os seniores, homens e mulheres, à medida que iam chegando, passavam por uma espécie de controlo de presenças, onde um indígena veterano lhes servia caxipembe. Uma espécie de xarope de fabrico artesanal, elaborado com aguardente de batata-doce e bagas de plantas selvagens devidamente trituradas. Uma mistura de elevado teor alcoólico, de cor avermelhada, sabor adocicado e ligeiramente ácido que se confundia com baganha de medronho fermentada.
Depois de cada um saborear um trago de caxipembe ia-se integrando na dança a que chamavam merengue ao ritmo do som monótono e ininterrupto dos tambores. Ao fim de alguns minutos, como se quisessem aliviar o cansaço, abandonavam a pista para beber mais uma dose de xarope e logo a seguir voltavam ao recinto da dança numa postura que parecia de plena realização. Situação que iam repetindo até à exaustão numa aparência de felicidade. Mesmo depois de completamente alcoolizados aquela dança alucinada continuava com os que iam resistindo até os outros recuperarem.
Os mais velhos, cansados de muitas lides, já sem forças para se manterem muito tempo de pé e incapazes de participar na dança, sentavam-se ao redor do recinto em notada nostalgia. Como se desempenhassem funções de júri ficavam de olhar vidrado em todos os movimentos festivos e ao mesmo tempo bebiam caxipembe em pequenos tragos que iam alternando com fumaças em cachimbos de maconha.
Um matusalém, que já não sabia a idade, arrastou-se para as proximidades do recinto, sem a ajuda dos mais novos, onde aguardou, pacientemente, que lhe servissem uma dose de caxipembe.
Os forasteiros que apesar de não estarem familiarizados com aquelas danças tradicionais acabavam imbuídos do mesmo sentimento como se comungassem do mesmo espirito festivo.  
A festa, sempre ao som do batuque, onde as notas iam saindo teimosamente iguais, dando ritmo ao merengue, prolongou-se por dois dias e uma noite. Assim que os tambores finalmente se calaram, a aldeia mergulhou no quotidiano pachorrento, numa estranha melancolia, como se o tempo definitivamente tivesse parado.
No dia seguinte, as mulheres voltaram às lavras para colher mandioca e massango para preparar a refeição e, os homens descansavam à porta dos quimbos como se tivessem chegado de uma grande jornada.
Avizinhavam-se tempos de mudança…



sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

MISSÃO DE ALTO RISCO



Quando os primeiros raios de sol beijaram a colina onde estávamos aquartelados, deixámos Ninda rumo a Gago Coutinho, (atual Lumbala) sede do Comando da nossa Unidade. Antes de iniciar a marcha, esperámos por dois indígenas que nos haviam pedido boleia e logo que eles se acomodaram, com os sacos de tralha, a um canto da carroçaria, dei a ordem de arranque. Esperava-nos uma viagem de cerca de setenta quilómetros, em picada arenosa, onde os turras se recreavam a enterrar minas e a montar emboscadas. Tínhamos também pela frente várias pontes, para a travessia das linhas de água e pântanos das chanas, edificadas sobre estacaria em madeira que eram alvo frequente de sabotagem. Para além disso, o inimigo estava sempre à espreita para a qualquer momento nos atacar traiçoeiramente.
Naquela fase do ano, em pleno junho de 1973, os dias eram longos, mas a crueldade da picada, na maioria das vezes, tornava-os insuficientes para um regresso, ao aquartelamento, dentro do tempo previsto. A partir do crepúsculo até ao nascer do sol as nossas comunicações sofriam um forte empastelamento e não funcionavam. Assim, para além de não podermos evacuar feridos também não podíamos dispor de apoio de qualquer natureza. Em face disso, os movimentos operacionais ficavam limitados ao período diurno.  
Naquele dia, o meu pelotão fora incumbido de levar a cabo uma operação de reabastecimento logístico a partir do Comando da Unidade até à nossa posição. Como é sabido, uma tropa moralizada e eficiente carece de um bom apoio logístico, mas ali tudo era problemático. Assim, o reabastecimento auto, normalmente, era de periocidade quinzenal, em dias aleatórios para tentar fugir à rotina. Os chamados frescos, "congelados" carne e peixe, chegavam, quase sempre, por via aérea. O terreno era hostil e qualquer deslocação era sempre arriscada, pelo que era indispensável tomar todas as precauções e o pessoal ir equipado com todo o material disponível: G3, HK-21, morteiro 60`, granadas e alguns dilagramas. Contudo, como frequentemente acontecia, o alferes, comandante do pelotão, baldou-se mais uma vez e o comando recaiu no furriel mais antigo que por sinal era eu. Quando a situação se complicava aquele costumava contrair paludismo deixando, assim, o pelotão entregue aos subalternos.  
Logo que abandonámos a nossa fortaleza, cercada por arame farpado, constituída por meia dúzia de barracos revestidos a cal e alguns buracos na areia a que chamávamos abrigos, a angústia inundou o nosso espírito. Com a cabeça afogada de dúvidas, carregávamos silêncios. Não falávamos do tempo que faltava para terminar a comissão e regressar à terra mãe, nem dos mosquitos que, durante a noite, nos espetavam o ferrão venenoso e não nos deixavam descansar, nem das matacanhas que nos roíam os pés, nem da Flor do Congo que nos devorava as virilhas, nem tão pouco dos percevejos que, nas camaratas, nos sugavam o sangue. No meio do silêncio daquele abismo de incertezas, para além dos olhos bem escancarados tentando observar tudo o que rodeava, por vezes, sobrava um rumor de impaciência em jeito de desabafo, sobre a via-sacra em que estávamos mergulhados. Digeríamos com dificuldade as patranhices que, ao longo do tempo, nos iam sendo incutidas por quem nunca calcava areia minada. Enquanto nos deslocávamos de coração apertado esquecíamos as dores, de todo o tipo, que nos ensombravam a mente.
As viaturas, três berliets escolhidas de um parque em exaustão, sem manutenção especializada, roncavam em penosa aflição, picada fora, rasgando a areia que teimava em entupir o sulco rasgado pelos rodados dianteiros e assustando a bicharada que povoava a mata. Ao fim de uma hora, em que percorremos cerca de vinte quilómetros, surgiu o primeiro contratempo. A certa altura, ouvimos um enorme estrondo semelhante ao deflagrar de uma granada. Depois dos procedimentos de segurança habituais, em situações de contacto com o inimigo que era saltar das viaturas e procurar abrigo para ripostar ao ataque, concluímos que se tratara de um simples rebentamento de um pneu na berliet que ocupava a segunda posição na coluna e que ficou com a jante enterrada na areia. Estávamos junto à ponte sobre o rio Luati onde, de ambos os lados da picada, eram visíveis pedaços de chaparia de viaturas que, em passagens anteriores, não resistiram aos rebentamentos de minas anticarro. Era um local propício a novos confrontos com os turras, pelo que montámos o dispositivo de segurança que se impunha para evitar uma surpresa desagradável. Havia que tomar precauções redobradas enquanto substituíamos o pneu, que não foi tarefa fácil, apesar da intervenção do mecânico que nos acompanhava em todas as deslocações auto.
Entretanto, digo ao furriel Duarte, de alcunha “Cacimbado”, para se encarregar da inspeção aos paus de mogno que revestiam a ponte e nos permitiam a travessia do rio. Era um veterano, cansado da guerra, a contas com duas dezenas de castigos que o iam perpetuando na guerra. Embora, durante os quase cinco anos que já levava de comissão, por várias regiões de Angola, tivesse tido desempenhos dignos de louvor, para os superiores hierárquicos só as suas falhas mereciam destaque. Apesar desse currículo pouco invejável, a par do desgaste físico e psicológico, tentava, a todo o custo, preservar a sua integridade física e de todo o grupo de combate. Em situações de caráter operacional, todos aprendíamos com a sua experiência guerreira. Ali, de G3 empunhada e sem abandonar o charro que trazia ao canto da boca, chamou dois homens da sua secção e diluiu-se no capim que ocultava a estacaria que sustentava a ponte. Situação que se foi repetindo sempre que eramos confrontados com outros pontões.
Uma hora mais tarde, prosseguimos a marcha num cenário que alternava entre chanas com boa visibilidade e mata densa onde o sol, apenas, espreitava por entre as frondes de mogno e acácia, vegetação que nos ia servindo de máscara. Perto da hora de almoço, chegámos a Gago Coutinho sem que tivéssemos sido surpreendidos por qualquer ataque inimigo.
Carregámos o material logístico previamente requisitado: combustíveis, produtos alimentares e componentes de guerra. Logo a seguir, apressámo-nos a regressar a Ninda que se adivinhava mais difícil. Para além da distância que tínhamos que percorrer podiam surgir surpresas de todo o tipo. Até porque em missões de reabastecimento não podíamos contrariar as rotinas e o nosso regresso à Base já não era surpresa para o inimigo. Apesar disso, a viagem foi decorrendo sem que a sua proximidade tivesse sido notada.
Na continuação da nossa missão, quando nos aproximávamos do rio Luce, numa descida de forte inclinação, a última berliet ficou sem travões. O condutor para não embater na viatura que circulava à sua frente guinou para a chana abrindo uma clareira através do capim. Só parou quando as rodas da frente ficaram totalmente atoladas no lodo. Como se aquela contrariedade não bastasse, na linha do horizonte eram visíveis nuvens ameaçadoras que se formaram rapidamente e anunciavam tempestade eminente. Então, para resgatar a berliet daquele pântano, utilizámos outra viatura como reboque e ainda a força braçal dos trinta homens do pelotão. Com os pés enterrados na lama, todos tentávamos dar o máximo das nossas forças. Entretanto, enquanto nos ocupávamos da viatura, fomos atingidos por uma trovoada, com chuva diluviana, acompanhada de granizo. Os relâmpagos pareciam querer fulminar tudo ao nosso redor. Os trovões faziam tremer o chão lamacento que pisávamos. As nuvens pariam pedras como ovos de galinha-do-mato. Perante tal cenário e tentando contrariar a alucinação de tanta adversidade, o experiente "Cacimbado", gritou: “força pessoal! Chuva civil não molha militares!”, frase que nos deu força redobrada para enfrentar com denodo a tarefa em que estávamos empenhados.
A fim de uma hora, encharcados até à alma, retomámos a marcha, ainda, debaixo de chuva. Restavam apenas duas berliets a funcionar porque a terceira ia atrelada à do meio ligada por uma lança de ferro. A noite caiu e a viagem foi prosseguindo, agora com maior lentidão. A picada tinha muita areia e as viaturas carregadas tinham maior dificuldade em progredir. A certa altura, o condutor da berliet que circulava em primeiro lugar não conseguiu engrenar a tração às rodas da frente e ficámos parados sem possibilidade de continuar e expostos a todos os perigos. Perante mais aquele incidente, chamei o mecânico tentando equacionar uma solução. Aquele, embora fosse um homem voluntarioso que não olhava a sacrifícios, naquela noite, não respondeu à chamada. Estava abatido física e psicologicamente para cumprir a sua função. Partilhava a capa de oleado com outro militar, mas estava totalmente molhado, respondeu com dificuldade:
    Não saio daqui nem que me matem! Aqui, não posso fazer nada! É preciso desmontar a caixa de velocidades!
A chuva não abrandava. A noite ia avançando, fria e cruel, sem nos deixar alternativa. Não tínhamos comunicações e a viatura avariada estava atolada na areia a bloquear a passagem da única berliet que ainda podia circular com autonomia. Durante alguns minutos a chuva aumentou de intensidade, fustigando a escuridão com crueldade. Embriagados pela adversidade, alguns elementos refugiaram-se debaixo da blindagem das carroçarias. Quando a chuva abrandou, fiz nova tentativa junto do mecânico, mas obtive a mesma resposta impiedosa:
     Já lhe disse que, não saio daqui nem que me matem!
Então, resolvi utilizar outra tática numa tentativa para aliciar o precioso mecânico. Convidei-o para me ajudar a beber uma garrafa de whisky Old Parr, que tinha guardada no meu baú, logo que chegássemos ao aquartelamento. Aí a coisa mudou de figura.  Não respondeu de imediato, mas depois de alguns segundos de refleção, disse:
     Está bem! Vou ver o que posso fazer!
Sem mais comentários, deixou o local onde estava refugiado, muniu-se de ferramenta apropriada e avançou determinado. Pegou na gambiarra que o condutor, entretanto lhe havia preparado e rastejou por debaixo da cabine, besuntada de óleo queimado, em busca de uma solução. Com a farda colada ao corpo iniciou o trabalho que se lhe afigurava difícil. Enquanto mexia nos ferrolhos ia dando instruções ao condutor para, em conjunto, conseguirem engrenar uma velocidade. Depois de muitas tentativas, o mecânico gritou:
  Alto! Não mexas mais! Vamos experimentar assim! Temos que ir sempre em segunda! Se não aguentar, temos que ir sempre em primeira! Não toques mais na alavanca de velocidades!
Quando o mecânico saiu debaixo da berliet metia dó. Para além de molhado e a tremer de frio, parecia um negro totalmente pintado de óleo queimado. Mas, ainda assim, não se cansava de realçar os seus conhecimentos técnicos que foram determinantes para remediar a avaria.
Finalmente, retomámos a marcha, picada fora, em busca de algum aconchego. Já estávamos perto. Não seriam mais de seis quilómetros. Mas nada estava garantido. Assim, em velocidade de caracol, chegámos ao conforto do Destacamento por volta da uma hora da manhã. Quando me preparava para mudar a farda molhada, fui interpelado pelo Comandante que, em jeito de ameaça, me questionou sobre o motivo de tão grande demora. Depois de um relato muito sumário, virei-lhe as costas com indiferença. Estava sem paciência para aturar o seu militarismo doentio, próprio de quem se resguardava no aconchego do arame farpado, longe do sacrifício e da guerra. Até porque estava na hora de pagar a minha promessa.
Logo que o mecânico chegou ao bar, onde usufruímos da companhia experiente do Cacimbado, bebemos e brindámos os três até esgotar duas garrafas. 





sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O MOEDOR DOS SUBÚRBIOS


Naquele dia, Joaquim Melro, depois de bem almoçado, saiu à rua, acendeu um cigarro e partiu com a intenção de se dirigir ao local onde estacionara o carro. Porém, durante o percurso, deparou-se com o compadre Ricardo que estava sentado à porta da adega, saboreando a sombra da latada que envolvia o edifício, e como normalmente acontecia Joaquim parou para o cumprimentar. Ricardo levantou-se, estendeu-lhe a mão e depois da normal saudação disse em voz bem audível:
   Compadre! Ainda bem que aparece! Acabei de abrir uma pipa e estava precisamente à sua espera para provar a pinga!
A tarde estava quente, mas os dois sexagenários não precisavam de qualquer pretexto para refrescar a garganta com um copo de tinto. Mas aqui, Melro não anuiu prontamente ao convite como seria o normal a esperar. Cofiou o bigode, pensativo, como se fizesse uma análise ao seu historial de tintos e só depois disse:  
    Compadre!... Não me leve a mal, mas hoje almocei bem e bebi melhor! Acho que até já ultrapassei o meu limite! – ao mesmo tempo e enquanto falava ia-se aproximando da porta da adega.
   Deixe-se de filosofias, homem!... Venha daí e vamos provar o vinho! – teimou o Ricardo.
      Bem!... já que tanto insiste, vamos a isso! 
Assim que entraram na adega, Ricardo apressou-se a encher um copo e entregou-o ao Joaquim Melro que, de imediato, o levou à boca e foi sorvendo em pequenos goles como se de um enólogo se tratasse. No intervalo de cada gole, mascava como se analisasse os extratos do néctar. Enquanto ele saboreava o vinho, o compadre observava-o, atentamente, à espera de um parecer entendido e no final questionou:
       Então que tal?
  Este palheto é muito aveludado, mas hoje o meu paladar não está, suficientemente, apurado para analisar vinho. Talvez depois de beber mais um copito ou dois lhe possa dar uma opinião mais avalizada! 
       Não seja por isso, compadre! Caramba, a pipa está cheia!
 Pois!... Mas não posso abusar! Sabe que está na hora de travar os apressados e não vá a minha missão altruísta virar pesadelo…
Após a reforma, Melro descobriu um processo invulgar de ocupar o tempo. Como discordava da velocidade que o trânsito fluía na estrada nacional resolveu colocar em prática um método para tentar impor alguma moderação à circulação automóvel. Assim, passou a fazer o percurso várias vezes ao dia, no seu carro, a partir da povoação onde vivia, até à entrada da cidade e vice-versa, numa distância aproximada de quatro quilómetros. A marcha que utilizava era tão lenta que só muito raramente chegava aos trinta quilómetros hora, estimulando, deste modo, a paciência de muitos condutores. Mentalizou-se que, com a sua intervenção, para além do divertimento pessoal, prestava um bom serviço à comunidade local, servida por aquela via.
   Ah!... Então é por causa disso que o compadre Melro hoje está esquipático? Deixe essa tarefa às autoridades que é para isso que pagamos impostos! 
       Vossemecê fala bem! – fez uma pausa para acender um cigarro, libertou uma densa baforada e continuou: – Com os políticos não podemos contar que só se preocupam em tratar dos seus próprios interesses. A polícia raramente cá passa e ninguém quer saber da nossa segurança. Eu ainda nem sei para que servem os limites de velocidade de 50 Km/hora, quando eles passam aqui a mais de 100! Até estou admirado como é que aqui ainda não ocorreram acidentes. 
    Pois!... Mas tenha cuidado! Olhe que eu já ouvi comentários muito desfavoráveis à sua pessoa, sabe que aquilo a que chama missão altruísta perturba a vida a muita gente.
        Francamente, não me diga que também está do lado deles! Olhe que eu não esperava isso de si! 
     Oh Melro! Parece que me conhece há dois dias! Eu apenas o estou a aconselhar. Nunca se sabe quando aparece algum diabo capaz de lhe dar uma “cachaporrada”. Vontade parece que não lhes falta! Bom!... Deixemos isso e vamos beber mais um tinto que como este o compadre bebe pouco! 
    É melhor é! A conversa deu-me securas – disse Melro forçando um sorriso. Esperou que Ricardo enchesse os copos e de seguida bebeu o seu de um só trago e no final exclamou: – Parabéns compadre! Este merecia ser premiado com a medalha de ouro! 
        Se o Melro o diz! 
      É muito bom! Mas voltando ao assunto!... Ai daquele que me tente agredir que não perde pela demora. Era só o que faltava, proibirem-me de transitar na via pública as vezes que eu quiser!
  A discordância deles reside apenas na velocidade, muito lenta, que vossemecê imprime ao seu carro, que provoca a ira de alguns automobilistas. Sabe muito bem que, em mais de quatro quilómetros, é proibido ultrapassar! – disse Ricardo, enquanto voltava a encher os copos.
   Paciência! O meu carro, que agora apelidam de papa-reformas, não dá mais de 30 Km/hora, quem tiver pressa que se vá queixar ao construtor – interrompeu a fala para beber mais um tinto e no final, com visível ansiedade, acrescentou: – Até já, compadre Ricardo! Agora, vou dar a volta ao percurso e no regresso, se cá estiver, bebo mais um copo!  
Assim, já bem bebido, Joaquim Melro ocupou o lugar ao volante do seu carro e abalou deleitado para mais um dos seus passeios. Logo que entrou na estrada nacional, em direção à cidade, foi brindado por uma buzinadela de um transeunte já familiarizado com aquela habitual marcha lenta que o forçava a uma penitência cansativa. Mas as contestações não desalentavam Melro, antes pelo contrário, extravasava até um certo divertimento, face aos protestos evidenciados pelos condutores, através de gestos e graçolas.  
Logo que terminou a primeira parte da viagem, antes de inverter o sentido de marcha, decidiu parar para comprar tabaco. Despreocupado, estacionou o carro da forma que lhe pareceu mais cómoda e entrou no café. Quando se abeirava do balcão notou que, tinha bebido em excesso, estava a ficar tonto, sentou-se, pediu um café e ficou a aguardar que as suas faculdades lhe permitissem regressar a casa.
Meia hora mais tarde, sentiu-se melhor e resolveu retomar o seu itinerário. No entanto, quando chegou junto ao carro, verificou que este havia sido vandalizado. Tinha várias manchas de tinta escura por toda a estrutura que contrastavam nitidamente com a cor branca, original da viatura. Não se cansou de protestar a plenos polmões, mas como não obteve resposta ocupou o lugar ao volante sem se lembrar mais do motivo que o levara ali e partiu de tal modo perturbado que espevitou o carro até aos setenta quilómetros hora, que era a velocidade máxima que na realidade atingia. Contudo, a determinada altura, ao entrar numa curva, carregou no pedal do acelerador em vez de acionar o travão e entrou em despiste de encontro a uma barreira. Ainda assim, para além de danos materiais avultados, saiu fisicamente ileso. No entanto, quando abandonava o habitáculo, parou junto a si um carro da polícia.





sexta-feira, 14 de novembro de 2014

BUROCRACIA

“Quem não coopera com o sistema será, certamente, devorado por ele”. Esta frase que vem a propósito da burocracia que reina entre nós era, em tempos,  utilizada pelo meu avô quando este se via enredado na teia burocrática confusa do sistema administrativo da “res publica”, que não lhe permitia concretizar as obras que tinha em mente. Infelizmente esta parece continuar tão actual, como na época em que ele a proferia. Apesar das promessas dos sucessivos governos, tudo parece continuar na mesma.  
Como todos sabemos, a burocracia não é só o brasão da incompetência, como também a fonte de muitos vícios de que enferma a, pomposamente, chamada democracia. Para além de poder dar origem a atos de corrupção, ela serve, sobretudo, para dificultar a vida aos cidadãos e dar importância a quem na realidade a não tem. E mais, penso até que passaria publicamente despercebido quem cumprisse cabalmente as funções de que é incumbido…