Quando me afoitei na torrente fluvial, Entraste em pânico e acudiste, Com a dádiva da amizade de animal, Que entre os homens já não existe.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
BATUQUE NA COMUNA DO SESSA
Ao início da
manhã, num palco assente em terra batida, três tambores de tamanhos diferentes,
forrados a pele de cabra, davam som ao batuque. Das mãos ágeis de cada
músico saíam as notas que anunciavam o começo da festa. À medida que a
população ia despertando ao som que lhe entrava pelos quimbos dentro convergia
para o local onde habitualmente se reunia em dias de festa. O recinto situava-se sob a
ramagem de eucaliptos gigantescos que iam coando o sol abrasador que, naquela
época do ano, se acentuava sobre a região. Estava na hora de festejar um
casamento na Comuna do Sessa. Uma sanzala perdida, algures, no meio da selva,
numa clareira que se situava entre a colina e o rio Sessa, longe do essencial para a vida
dos seus habitantes.
As moças, ainda
virgens, “cafecos” como lhe chamavam, foram as primeiras a chegar. Vestidas com
roupas de cores garridas e ornamentadas com colares e pulseiras de missanga, no
pescoço, nos braços e nas pernas, abanavam as ancas com movimentos frenéticos,
numa incessante dança erótica, mostrando os seus dotes aos jovens disponíveis
da aldeia.
Os seniores,
homens e mulheres, à medida que iam chegando, passavam por uma espécie de
controlo de presenças, onde um indígena veterano lhes servia caxipembe. Uma espécie
de xarope de fabrico artesanal, elaborado com aguardente de batata-doce e bagas
de plantas selvagens devidamente trituradas. Uma mistura de elevado teor
alcoólico, de cor avermelhada, sabor adocicado e ligeiramente ácido que se
confundia com baganha de medronho fermentada.
Depois de cada
um saborear um trago de caxipembe ia-se integrando na dança a que chamavam
merengue ao ritmo do som monótono e ininterrupto dos tambores. Ao fim de alguns
minutos, como se quisessem aliviar o cansaço, abandonavam a pista para beber
mais uma dose de xarope e logo a seguir voltavam ao recinto da dança numa
postura que parecia de plena realização. Situação que iam repetindo até à
exaustão numa aparência de felicidade. Mesmo depois de completamente
alcoolizados aquela dança alucinada continuava com os que iam resistindo até os outros
recuperarem.
Os mais velhos,
cansados de muitas lides, já sem forças para se manterem muito tempo de pé e
incapazes de participar na dança, sentavam-se ao redor do recinto em notada
nostalgia. Como se desempenhassem funções de júri ficavam de olhar vidrado em
todos os movimentos festivos e ao mesmo tempo bebiam caxipembe em pequenos
tragos que iam alternando com fumaças em cachimbos de maconha.
Um matusalém,
que já não sabia a idade, arrastou-se para as proximidades do recinto, sem a
ajuda dos mais novos, onde aguardou, pacientemente, que lhe servissem uma dose
de caxipembe.
Os forasteiros
que apesar de não estarem familiarizados com aquelas danças tradicionais
acabavam imbuídos do mesmo sentimento como se comungassem do mesmo espirito
festivo.
A festa, sempre
ao som do batuque, onde as notas iam saindo teimosamente iguais, dando ritmo ao
merengue, prolongou-se por dois dias e uma noite. Assim que os tambores
finalmente se calaram, a aldeia mergulhou no quotidiano pachorrento, numa
estranha melancolia, como se o tempo definitivamente tivesse parado.
No dia
seguinte, as mulheres voltaram às lavras para colher mandioca e massango para
preparar a refeição e, os homens descansavam à porta dos quimbos como se
tivessem chegado de uma grande jornada.
Avizinhavam-se tempos de mudança…
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
MISSÃO DE ALTO RISCO
Quando os
primeiros raios de sol beijaram a colina onde estávamos aquartelados, deixámos
Ninda rumo a Gago Coutinho, (atual Lumbala) sede do Comando da nossa Unidade. Antes de iniciar
a marcha, esperámos por dois indígenas que nos haviam pedido boleia e logo que
eles se acomodaram, com os sacos de tralha, a um canto da carroçaria, dei a
ordem de arranque. Esperava-nos uma viagem de cerca de setenta quilómetros, em
picada arenosa, onde os turras se recreavam a enterrar minas e a
montar emboscadas. Tínhamos também pela frente várias pontes, para a travessia das linhas de água e pântanos das chanas, edificadas sobre
estacaria em madeira que eram alvo frequente de sabotagem. Para além disso, o
inimigo estava sempre à espreita para a qualquer momento nos atacar
traiçoeiramente.
Naquela fase do
ano, em pleno junho de 1973, os dias eram longos, mas a crueldade da picada, na
maioria das vezes, tornava-os insuficientes para um regresso, ao aquartelamento,
dentro do tempo previsto. A partir do crepúsculo até ao nascer do sol as nossas
comunicações sofriam um forte empastelamento e não funcionavam. Assim, para
além de não podermos evacuar feridos também não podíamos dispor de apoio de
qualquer natureza. Em face disso, os movimentos operacionais ficavam limitados ao período
diurno.
Naquele dia, o
meu pelotão fora incumbido de levar a cabo uma operação de reabastecimento
logístico a partir do Comando da Unidade até à nossa posição. Como é sabido, uma tropa moralizada e eficiente carece de um bom apoio logístico, mas ali tudo era problemático. Assim, o reabastecimento auto, normalmente, era de periocidade quinzenal, em dias aleatórios para tentar fugir à rotina. Os chamados frescos, "congelados" carne e peixe, chegavam, quase sempre, por via aérea. O terreno era hostil e qualquer deslocação era
sempre arriscada, pelo que era indispensável tomar todas as precauções e o pessoal ir
equipado com todo o material disponível: G3, HK-21, morteiro 60`, granadas e alguns
dilagramas. Contudo, como frequentemente acontecia, o alferes, comandante do
pelotão, baldou-se mais uma vez e o comando recaiu no furriel mais antigo que
por sinal era eu. Quando a situação se complicava aquele costumava contrair paludismo deixando, assim, o pelotão entregue aos subalternos.
Logo que abandonámos a nossa fortaleza, cercada por arame farpado, constituída por meia dúzia de barracos
revestidos a cal e alguns buracos na areia a que chamávamos abrigos, a angústia inundou o nosso espírito. Com a cabeça afogada de dúvidas, carregávamos
silêncios. Não falávamos do tempo que faltava para terminar a comissão e regressar à terra mãe, nem dos
mosquitos que, durante a noite, nos espetavam o ferrão venenoso e não nos deixavam descansar, nem das matacanhas que nos roíam os
pés, nem da Flor do Congo que nos devorava as virilhas, nem tão pouco dos
percevejos que, nas camaratas, nos sugavam o sangue. No meio do silêncio
daquele abismo de incertezas, para além dos olhos bem escancarados tentando observar tudo o que rodeava, por vezes, sobrava um rumor de impaciência em
jeito de desabafo, sobre a via-sacra em que estávamos mergulhados. Digeríamos
com dificuldade as patranhices que, ao longo do tempo, nos iam sendo incutidas
por quem nunca calcava areia minada. Enquanto nos deslocávamos de coração
apertado esquecíamos as dores, de todo o tipo, que nos ensombravam a mente.
As viaturas, três berliets escolhidas de um parque em exaustão,
sem manutenção especializada, roncavam em penosa aflição, picada fora, rasgando a areia
que teimava em entupir o sulco rasgado pelos rodados dianteiros e assustando a
bicharada que povoava a mata. Ao fim de uma hora, em que percorremos cerca de vinte quilómetros, surgiu o primeiro contratempo. A certa altura, ouvimos um enorme estrondo
semelhante ao deflagrar de uma granada. Depois dos procedimentos de segurança
habituais, em situações de contacto com o inimigo que era saltar das viaturas e procurar abrigo para ripostar ao ataque, concluímos que se tratara de
um simples rebentamento de um pneu na berliet que ocupava a segunda posição na
coluna e que ficou com a jante enterrada na areia. Estávamos junto à ponte
sobre o rio Luati onde, de ambos os lados da picada, eram visíveis pedaços de
chaparia de viaturas que, em passagens anteriores, não resistiram aos
rebentamentos de minas anticarro. Era um local propício a novos confrontos com
os turras, pelo que montámos o dispositivo de segurança que se impunha para evitar uma surpresa desagradável. Havia
que tomar precauções redobradas enquanto substituíamos o pneu, que não foi tarefa fácil, apesar da intervenção do mecânico que nos acompanhava em todas as deslocações auto.
Entretanto,
digo ao furriel Duarte, de alcunha “Cacimbado”, para se encarregar da inspeção
aos paus de mogno que revestiam a ponte e nos permitiam a travessia do rio. Era um veterano,
cansado da guerra, a contas com duas dezenas de castigos que o iam perpetuando
na guerra. Embora, durante os quase cinco anos que já levava de comissão, por várias regiões de Angola, tivesse tido desempenhos dignos de louvor, para os superiores hierárquicos só
as suas falhas mereciam destaque. Apesar desse currículo pouco invejável, a par
do desgaste físico e psicológico, tentava, a todo o custo, preservar a sua
integridade física e de todo o grupo de combate. Em situações de caráter operacional, todos aprendíamos com a sua experiência
guerreira. Ali, de G3 empunhada e sem abandonar o charro que trazia
ao canto da boca, chamou dois homens da sua secção e diluiu-se no capim que
ocultava a estacaria que sustentava a ponte. Situação que se foi repetindo
sempre que eramos confrontados com outros pontões.
Uma hora mais
tarde, prosseguimos a marcha num cenário que alternava entre chanas com boa
visibilidade e mata densa onde o sol, apenas, espreitava por entre as frondes
de mogno e acácia, vegetação que nos ia servindo de máscara. Perto da hora de almoço, chegámos a Gago Coutinho sem que
tivéssemos sido surpreendidos por qualquer ataque inimigo.
Carregámos o
material logístico previamente requisitado: combustíveis, produtos alimentares e componentes de guerra. Logo a seguir, apressámo-nos a regressar a Ninda que se adivinhava mais difícil. Para além
da distância que tínhamos que percorrer podiam surgir surpresas de todo o tipo.
Até porque em missões de reabastecimento não podíamos contrariar as rotinas e o
nosso regresso à Base já não era surpresa para o inimigo. Apesar disso, a
viagem foi decorrendo sem que a sua proximidade tivesse sido notada.
Na continuação da nossa missão, quando nos
aproximávamos do rio Luce, numa descida de forte inclinação, a última berliet
ficou sem travões. O condutor para não embater na viatura que circulava à sua
frente guinou para a chana abrindo uma clareira através do capim. Só parou
quando as rodas da frente ficaram totalmente atoladas no lodo. Como se aquela contrariedade
não bastasse, na linha do horizonte eram visíveis nuvens ameaçadoras que se
formaram rapidamente e anunciavam tempestade eminente. Então, para resgatar a berliet
daquele pântano, utilizámos outra viatura como reboque e ainda a força braçal
dos trinta homens do pelotão. Com os pés enterrados na lama, todos tentávamos
dar o máximo das nossas forças. Entretanto, enquanto nos ocupávamos da viatura, fomos atingidos
por uma trovoada, com chuva diluviana, acompanhada de granizo. Os relâmpagos
pareciam querer fulminar tudo ao nosso redor. Os trovões faziam tremer o chão
lamacento que pisávamos. As nuvens pariam pedras como ovos de galinha-do-mato. Perante tal cenário e tentando contrariar a alucinação de tanta adversidade, o experiente "Cacimbado", gritou:
“força pessoal! Chuva civil não molha militares!”, frase que nos deu força
redobrada para enfrentar com denodo a tarefa em que estávamos empenhados.
A fim de uma
hora, encharcados até à alma, retomámos a marcha, ainda, debaixo de chuva.
Restavam apenas duas berliets a funcionar porque a terceira ia atrelada à do
meio ligada por uma lança de ferro. A noite caiu e a viagem foi prosseguindo,
agora com maior lentidão. A picada tinha muita areia e as viaturas carregadas
tinham maior dificuldade em progredir. A certa altura, o condutor da berliet
que circulava em primeiro lugar não conseguiu engrenar a tração às rodas da
frente e ficámos parados sem possibilidade de continuar e expostos a todos os
perigos. Perante mais aquele incidente, chamei o mecânico tentando equacionar
uma solução. Aquele, embora fosse um homem voluntarioso que não olhava a
sacrifícios, naquela noite, não respondeu à chamada. Estava abatido física e
psicologicamente para cumprir a sua função. Partilhava a capa de oleado com
outro militar, mas estava totalmente molhado, respondeu com dificuldade:
─ Não saio daqui nem que me matem! Aqui, não posso fazer nada! É preciso
desmontar a caixa de velocidades!
A chuva não
abrandava. A noite ia avançando, fria e cruel, sem nos deixar alternativa. Não
tínhamos comunicações e a viatura avariada estava atolada na areia a bloquear a
passagem da única berliet que ainda podia circular com autonomia. Durante
alguns minutos a chuva aumentou de intensidade, fustigando a escuridão com
crueldade. Embriagados pela adversidade, alguns elementos refugiaram-se debaixo
da blindagem das carroçarias. Quando a chuva abrandou, fiz nova tentativa junto
do mecânico, mas obtive a mesma resposta impiedosa:
─ Já lhe disse que, não saio daqui nem que me matem!
Então, resolvi
utilizar outra tática numa tentativa para aliciar o precioso mecânico.
Convidei-o para me ajudar a beber uma garrafa de whisky Old Parr, que tinha
guardada no meu baú, logo que chegássemos ao aquartelamento. Aí a coisa mudou
de figura. Não respondeu de imediato,
mas depois de alguns segundos de refleção, disse:
─ Está bem! Vou ver o que posso fazer!
Sem mais
comentários, deixou o local onde estava refugiado, muniu-se de ferramenta
apropriada e avançou determinado. Pegou na gambiarra que o condutor, entretanto
lhe havia preparado e rastejou por debaixo da cabine, besuntada de óleo
queimado, em busca de uma solução. Com a farda colada ao corpo iniciou o
trabalho que se lhe afigurava difícil. Enquanto mexia nos ferrolhos ia dando
instruções ao condutor para, em conjunto, conseguirem engrenar uma velocidade.
Depois de muitas tentativas, o mecânico gritou:
─ Alto! Não mexas mais! Vamos experimentar assim! Temos que ir sempre em
segunda! Se não aguentar, temos que ir sempre em primeira! Não toques mais na
alavanca de velocidades!
Quando o
mecânico saiu debaixo da berliet metia dó. Para além de molhado e a tremer de
frio, parecia um negro totalmente pintado de óleo queimado. Mas, ainda assim,
não se cansava de realçar os seus conhecimentos técnicos que foram
determinantes para remediar a avaria.
Finalmente,
retomámos a marcha, picada fora, em busca de algum aconchego. Já estávamos
perto. Não seriam mais de seis quilómetros. Mas nada estava garantido. Assim,
em velocidade de caracol, chegámos ao conforto do Destacamento por volta da uma
hora da manhã. Quando me preparava para mudar a farda molhada, fui interpelado
pelo Comandante que, em jeito de ameaça, me questionou sobre o motivo de tão
grande demora. Depois de um relato muito sumário, virei-lhe as costas com
indiferença. Estava sem paciência para aturar o seu militarismo doentio,
próprio de quem se resguardava no aconchego do arame farpado, longe do sacrifício
e da guerra. Até porque estava na hora de pagar a minha promessa.
Logo que o mecânico chegou ao bar, onde usufruímos da companhia experiente do Cacimbado, bebemos e brindámos os três até esgotar duas garrafas.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
O MOEDOR DOS SUBÚRBIOS
Naquele dia, Joaquim
Melro, depois de bem almoçado, saiu à rua, acendeu um cigarro e partiu com a intenção de se dirigir ao local
onde estacionara o carro. Porém, durante o percurso, deparou-se com o compadre
Ricardo que estava sentado à porta da adega, saboreando a sombra da latada que
envolvia o edifício, e como normalmente acontecia Joaquim parou para o cumprimentar. Ricardo
levantou-se, estendeu-lhe a mão e depois da normal saudação disse em voz bem
audível:
─ Compadre! Ainda bem que aparece! Acabei de abrir uma pipa e estava
precisamente à sua espera para provar a pinga!
A tarde estava
quente, mas os dois sexagenários não precisavam de qualquer pretexto para
refrescar a garganta com um copo de tinto. Mas aqui, Melro não anuiu
prontamente ao convite como seria o normal a esperar. Cofiou o bigode,
pensativo, como se fizesse uma análise ao seu historial de tintos e só depois disse:
─ Compadre!... Não me leve a mal, mas hoje almocei bem e bebi melhor! Acho
que até já ultrapassei o meu limite! – ao mesmo tempo e enquanto falava ia-se
aproximando da porta da adega.
─ Deixe-se de filosofias, homem!... Venha daí e vamos provar o vinho! –
teimou o Ricardo.
─ Bem!... já que tanto insiste, vamos a isso!
Assim que
entraram na adega, Ricardo apressou-se a encher um copo e entregou-o ao Joaquim Melro que, de imediato, o levou à boca e foi sorvendo em pequenos goles como se de um enólogo se tratasse. No
intervalo de cada gole, mascava como se analisasse os extratos do néctar.
Enquanto ele saboreava o vinho, o compadre observava-o, atentamente, à espera
de um parecer entendido e no final questionou:
─
Então que tal?
─ Este palheto é muito aveludado, mas hoje o meu paladar não está,
suficientemente, apurado para analisar vinho. Talvez depois de beber mais um
copito ou dois lhe possa dar uma opinião mais avalizada!
─
Não seja por isso, compadre! Caramba, a pipa está cheia!
─ Pois!... Mas não posso abusar! Sabe que está na hora de travar os
apressados e não vá a minha missão altruísta virar pesadelo…
Após a reforma,
Melro descobriu um processo invulgar de ocupar o tempo. Como discordava da velocidade
que o trânsito fluía na estrada nacional resolveu colocar em prática um
método para tentar impor alguma moderação à circulação automóvel. Assim, passou
a fazer o percurso várias vezes ao dia, no seu carro, a partir da povoação onde
vivia, até à entrada da cidade e vice-versa, numa distância aproximada de quatro quilómetros. A marcha que utilizava era tão lenta que só muito raramente
chegava aos trinta quilómetros hora, estimulando, deste modo, a paciência de
muitos condutores. Mentalizou-se que, com a sua
intervenção, para além do divertimento pessoal, prestava um bom serviço à
comunidade local, servida por aquela via.
─ Ah!... Então é por causa disso que o compadre Melro hoje está esquipático?
Deixe essa tarefa às autoridades que é para isso que pagamos impostos!
─
Vossemecê fala bem! – fez uma pausa para acender um cigarro, libertou uma
densa baforada e continuou: – Com os políticos não podemos contar que só se preocupam em tratar dos seus próprios interesses. A polícia raramente cá passa e ninguém quer saber
da nossa segurança. Eu ainda nem sei para que servem os limites de velocidade
de 50 Km/hora, quando eles passam aqui a mais de 100! Até estou admirado como é
que aqui ainda não ocorreram acidentes.
─ Pois!... Mas tenha cuidado! Olhe que eu já ouvi comentários muito
desfavoráveis à sua pessoa, sabe que aquilo a que chama missão altruísta
perturba a vida a muita gente.
─
Francamente, não me diga que também está do lado deles! Olhe que eu não
esperava isso de si!
─ Oh Melro! Parece que me conhece há dois dias! Eu apenas o estou a aconselhar.
Nunca se sabe quando aparece algum diabo capaz de lhe dar uma “cachaporrada”.
Vontade parece que não lhes falta! Bom!... Deixemos isso e vamos beber mais um
tinto que como este o compadre bebe pouco!
─ É melhor é! A conversa deu-me securas –
disse Melro forçando um sorriso. Esperou que Ricardo enchesse os copos e de
seguida bebeu o seu de um só trago e no final exclamou: – Parabéns compadre!
Este merecia ser premiado com a medalha de ouro!
─
Se o Melro o diz!
─ É muito bom! Mas voltando ao assunto!... Ai daquele que me tente agredir
que não perde pela demora. Era só o que faltava, proibirem-me de transitar na
via pública as vezes que eu quiser!
─ A discordância deles reside apenas na velocidade, muito lenta, que
vossemecê imprime ao seu carro, que provoca a ira de alguns automobilistas. Sabe
muito bem que, em mais de quatro quilómetros, é proibido ultrapassar! – disse
Ricardo, enquanto voltava a encher os copos.
─ Paciência! O meu carro, que agora apelidam de papa-reformas, não dá mais de 30 Km/hora, quem tiver pressa
que se vá queixar ao construtor – interrompeu a fala para beber mais um tinto e
no final, com visível ansiedade, acrescentou: – Até já, compadre Ricardo! Agora, vou dar a volta ao
percurso e no regresso, se cá estiver, bebo mais um copo!
Assim, já bem
bebido, Joaquim Melro ocupou o lugar ao volante do seu carro e abalou deleitado
para mais um dos seus passeios. Logo que entrou na estrada nacional, em direção à cidade,
foi brindado por uma buzinadela de um transeunte já familiarizado com aquela
habitual marcha lenta que o forçava a uma penitência cansativa. Mas as
contestações não desalentavam Melro, antes pelo contrário, extravasava até um
certo divertimento, face aos protestos evidenciados pelos condutores, através
de gestos e graçolas.
Logo que terminou
a primeira parte da viagem, antes de inverter o sentido de marcha, decidiu
parar para comprar tabaco. Despreocupado, estacionou o carro da forma que lhe
pareceu mais cómoda e entrou no café. Quando se abeirava do balcão notou que,
tinha bebido em excesso, estava a ficar tonto, sentou-se, pediu um café e ficou
a aguardar que as suas faculdades lhe permitissem regressar a casa.
Meia hora mais
tarde, sentiu-se melhor e resolveu retomar o seu itinerário. No entanto, quando chegou
junto ao carro, verificou que este havia sido vandalizado. Tinha várias manchas
de tinta escura por toda a estrutura que contrastavam nitidamente com a cor
branca, original da viatura. Não se cansou de protestar a plenos polmões, mas como não obteve resposta ocupou o lugar ao
volante sem se lembrar mais do motivo que o levara ali e partiu de tal modo
perturbado que espevitou o carro até aos setenta quilómetros hora, que era a
velocidade máxima que na realidade atingia. Contudo, a determinada altura, ao
entrar numa curva, carregou no pedal do acelerador em vez de acionar o travão e
entrou em despiste de encontro a uma barreira. Ainda assim, para além de danos
materiais avultados, saiu fisicamente ileso. No entanto, quando abandonava o
habitáculo, parou junto a si um carro da polícia.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
BUROCRACIA
“Quem não coopera com o sistema será, certamente, devorado por ele”. Esta frase que vem a propósito da burocracia que reina entre nós era, em tempos, utilizada pelo meu avô quando este se via enredado na teia burocrática confusa do sistema administrativo da “res publica”, que não lhe permitia concretizar as obras que tinha em mente. Infelizmente esta parece continuar tão actual, como na época em que ele a proferia. Apesar das promessas dos sucessivos governos, tudo parece continuar na mesma.
Como todos sabemos, a burocracia não é só o brasão da incompetência, como também a fonte de muitos vícios de que enferma a, pomposamente, chamada democracia. Para além de poder dar origem a atos de corrupção, ela serve, sobretudo, para dificultar a vida aos cidadãos e dar importância a quem na realidade a não tem. E mais, penso até que passaria publicamente despercebido quem cumprisse cabalmente as funções de que é incumbido…
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
O TESOURO COBIÇADO
Naquela noite
de novembro de 1920, Acácio Mineiro não fez serão à lareira como habitualmente, logo que terminou a ceia decidiu ir para a cama. Estava muito cansado. Passara o dia a podar a vinha e como se esse trabalho já não fosse suficientemente cansativo o tempo, chuva miudinha ininterrupta, também não ajudara. Em função dessa labuta, assim que chegou à cama adormeceu, mas estava longe de imaginar o que a noite lhe reservava.
Uma hora mais tarde, acordou estonteado, ao som do matraquear das
ferraduras de uma qualquer cavalgadura que se aproximava pela viela que dava
acesso à sua casa. A esposa, como habitualmente, dormia que nem uma pedra. Tinha
a doença do sono, dificilmente acordava a menos que a casa lhe caísse em cima. No
entanto, pelo contrário, ele dava conta de qualquer ruído, fruto dos seus dias
de guerra e da intranquilidade que lá vivera que o forçara a um alerta
permanente na luta pela sobrevivência. Para além dessa vigilância constante, a
sua casa, edificada em pedra de xisto, ficava paredes-meias com a via
pública e isolada do resto do casario, cerca de duzentos metros, o que, por si
só, facilitava a perceção de qualquer movimento, mas ao mesmo tempo, tornava a habitação mais vulnerável a um qualquer assalto.
Não era normal
a passagem de quadrúpedes pela aldeia àquela hora tardia, muito menos por uma ruela estreita que,
apenas, dava acesso às propriedades agrícolas. Em
face disso, Acácio ficou confuso, sem saber muito bem onde se encontrava, como se
despertasse de mais um dos seus, frequentes, pesadelos. Começou por fazer
conjeturas sobre o que teria acontecido, mas como não encontrou explicação
lógica, ajeitou a almofada, aconchegou as mantas e mudou diversas vezes de
posição, à espera que o sono lhe sossegasse a mente. Porém, quando estava quase
a adormecer, o silêncio voltou a ser interrompido. O matraquear atormentador
das ferraduras sobre a rua em macadame voltou a ouvir-se em passada muito
pausada. De passada em passada acabaria por se imobilizar junto ao seu casebre.
Agora estava
acordado, tinha a certeza de que não se tratava de um pesadelo. Era mesmo real!
Quem seria àquela hora da noite? Assaltantes? Uma força policial no encalce de
algum criminoso? Algum viajante perdido em busca de auxílio? Sem resposta para as suas conjeturas, saltou da cama
como que impulsionado por uma mola, mas enquanto aguardava que lhe batessem à
porta e se identificassem, muitos pensamentos lhe passaram pela ideia. Enquanto esperava que a situação evoluísse manteve-se imóvel.
Entretanto,
vieram-lhe à memória histórias de arrepiar que ouvira sobre as invasões
francesas. Nessa época, as tropas de Napoleão vandalizavam casas e celeiros,
dia e noite, saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Aos aldeões não
restava outra solução que não fosse fugir ou pactuar com os invasores na
esperança de que nada de pior lhes acontecesse.
Tentando conter
a respiração e com a mente mergulhada nesses pensamentos aterrorizantes tateou
o canhangulo, de carregar pela boca, que tinha junto à cama. Armou o cão e
ficou de tocaia à espera que um qualquer vândalo lhe entrasse pela casa dentro.
Estava convicto que o primeiro a invadir a sua intimidade seria abatido à
queima-roupa. Depois logo veria, mas como não teria tempo para recarregar a
espingarda resolveria a questão à cacetada. Aguentou alguns segundos na
escuridão do seu pequeno espaço, sem que a situação evoluísse. Por fim, ouviu
um murmúrio confuso de vozes que se misturavam com o chapinhar das pingos de chuva que caíam dos beirados, prenúncio de que algo de inesperado estaria para
acontecer. Um arrepio percorreu-lhe a espinha que o impulsionou a antecipar-se
aos acontecimentos. Abeirou-se, silenciosamente, do postigo que dava para a
viela, conteve a respiração e abriu cautelosamente o caixilho. Meteu o cano da arma de fora e
disparou para o vazio. O clarão, acompanhado de um estrondo aterrador, rasgou inesperadamente
a escuridão e, ato contínuo, gerou movimentos inesperados que culminaram numa
retirada em galope desenfreado. Logo a seguir, acendeu a candeia de azeite e
recarregou apressadamente a espingarda, na expectativa do que pudesse surgir. Apesar
da sua cautela não viria a se incomodado o resto da noite.
Acácio Mineiro
tinha regressado, há cerca de dois anos, da Primeira Grande Guerra onde
combatera na região da Flandres. À semelhança de muitos companheiros havia sido
integrado no Corpo Expedicionário, sem estar minimamente preparado para a
guerra. Na realidade, para além de teorias avulsas e de prática de
ordem unida, tinha apenas no seu curriculum uma dúzia de disparos com a
espingarda Mauser, efetuados em carreira de tiro. Em função disso e das
condições deploráveis que ali encontrara, enterrado nas trincheiras, com água
pelos joelhos e exposto aos gases utilizados tanto pelas forças inimigas, como
até pelas amigas, acabaria por adoecer alguns meses depois. Contudo, só
regressaria a Portugal após o Armistício, onde viria a chegar num estado
lastimável, magro e doente, ao ponto de a família ter dificuldade em o
reconhecer. Agora parecia curado das lesões físicas, mas os traumas das etapas vividas ainda
estavam latentes.
A par das agruras que lá passara, parece que ainda teria tido um
pequeno rasgo de sorte. Constava-se que, durante um combate, enquanto se
abrigava nos escombros de um edifício parcialmente destruído pela guerra, teria
encontrado uma caixa com cinquenta libras em ouro. Só mais tarde, depois de
regressar a casa, viria a denunciar a posse do seu pequeno tesouro, trocando
algumas libras por moeda corrente. Com o passar do tempo, a história do tesouro
foi tomando forma e espalhou-se pelos negociadores de ouro, desencadeando a
cobiça dos amigos do alheio que, devido àquele tempo difícil, estavam mais
ávidos do que nunca. Foi preciso aquele susto para que Acácio Mineiro tomasse
consciência disso e ficasse mais acautelado.
domingo, 14 de setembro de 2014
OUSADIA DE FINALISTA
Na véspera do
dia da queima das fitas, como habitualmente, as ruas de Coimbra fervilhavam de
gente. Muitos eram forasteiros que embora oriundos de outras regiões,
galvanizados pelo ambiente estudantil, deixavam-se facilmente enamorar pelas
tradições académicas. Com o aproximar da hora, alguns estudantes ocupavam-se
dos últimos preparativos para o desfile das academias; outros, deambulavam pela
cidade em ritual boémio e excessos de toda a ordem, como que anunciando o
culminar da sua etapa estudantil. Entre esses, encontravam-se dois finalistas de
direito, o Barnabé e o Esteves, acompanhados das respetivas namoradas, que com
a hora do jantar a avizinhar-se decidiram petiscar.
Corria a década
de setenta do século passado, num tempo em que o dinheiro não abundava nos
bolsos de muitos cidadãos e para os estudantes a situação não fugia à regra,
atendendo a que dependiam da mesada dos pais que por sinal bastante
forretas, fruto das dificuldades que aquele tempo teimava em oferecer-lhes.
Ora, os dois estudantes mesmo sabendo que não tinham dinheiro sentaram-se à
mesa numa esplanada de uma tasca, preparados para comer e beber do melhor que a
casa tinha para oferecer. Então, aproveitando a confusão gerada pela elevada
afluência, resolveram impressionar as raparigas como se fossem homens
endinheirados. Consultaram a ementa e depois de uma escolha bastante ponderada
decidiram-se por uma caçoila de chanfana para os quatro. Esperaram
pacientemente pelo empregado que, nesse dia, não tinha parança e encomendaram o
pitéu. Ao mesmo tempo, solicitaram também as entradas e uma garrafa de vinho
tinto alentejano, com o comentário de que aquele prato requeria uma pinga de
qualidade.
O dia fora
movimentado e a barriga estava a reivindicar aconchego. Mas na presença das
raparigas argumentavam que, na hora da despedida, queriam aferir a qualidade da
confeção daquela iguaria regional, sobejamente elogiada por muitos
apreciadores.
Enquanto aguardavam
que o jantar lhes fosse servido, iam petiscando em amena cavaqueira, numa
postura alegre e descontraída, longe de qualquer preocupação com o pagamento.
Precisavam de impressionar os tasqueiros pela positiva que, normalmente eram
muito experientes e detetavam os caloteiros até pelo olhar.
Logo que o
empregado os serviu entregaram-se ao prazer de cada garfada com a voracidade de
quem há muito não comia uma tal iguaria. Contudo, à medida que a caçoila ia
ficando vazia, nos bastidores do espírito dos dois doutores apenas existia uma
preocupação, como iam sair da encruzilhada em que se haviam metido. Mas depois
do primeiro combate terminar, dedicaram-se à sobremesa com o mesmo apetite do
prato principal.
No final, depois
de bem saciados, estudaram, rapidamente, a melhor forma de se livrar da despesa
que haviam contraído. Assim, logo que o empregado se ocupou de outros clientes,
o Esteves acompanhado das raparigas deixou o aconchego da mesa que ocupavam em
busca de um refúgio previamente acordado entre os dois homens. Mal o terreno
ficou livre, Barnabé, o mais ousado, levantou o braço em direção ao empregado e
solicitou a conta. Cheio de boa-fé, o pobre homem baixou a guarda e
encaminhou-se para a caixa registadora instalada no interior do
estabelecimento e quando regressou, num abrir e fechar de olhos, encontrou a
mesa vazia. Correu inquieto tentando localizar os jovens doutores, mas não lhe
voltaria a por a vista em cima que, entretanto, se diluíram na multidão.
Dias mais
tarde, quando Barnabé se deslocava na alta coimbrã, deu de caras com o
tasqueiro da caçoila de chanfana que de imediato lhe barrou a passagem,
dizendo:
─
Com que então enchemos a barriguinha à custa aqui do Gilberto, não é!?
─
Ah… Ah… Ah…
─ Não aceito
desculpas! Chegou a hora da cobrança, meu caro doutor! Ou pagas, ou faço sinal
ao polícia! – concluiu Gilberto.
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