quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O TESOURO COBIÇADO




Naquela noite de novembro de 1920, Acácio Mineiro não fez serão à lareira como habitualmente, logo que terminou a ceia decidiu ir para a cama. Estava muito cansado. Passara o dia a  podar a vinha e como se esse trabalho já não fosse suficientemente cansativo o tempo, chuva miudinha ininterrupta, também não ajudara. Em função dessa labuta, assim que chegou à cama adormeceu, mas estava longe de imaginar o que a noite lhe reservava. 
Uma hora mais tarde, acordou estonteado, ao som do matraquear das ferraduras de uma qualquer cavalgadura que se aproximava pela viela que dava acesso à sua casa. A esposa, como habitualmente, dormia que nem uma pedra. Tinha a doença do sono, dificilmente acordava a menos que a casa lhe caísse em cima. No entanto, pelo contrário, ele dava conta de qualquer ruído, fruto dos seus dias de guerra e da intranquilidade que lá vivera que o forçara a um alerta permanente na luta pela sobrevivência. Para além dessa vigilância constante, a sua casa, edificada em pedra de xisto, ficava paredes-meias com a via pública e isolada do resto do casario, cerca de duzentos metros, o que, por si só, facilitava a perceção de qualquer movimento, mas ao mesmo tempo, tornava a habitação mais vulnerável a um qualquer assalto. 
Não era normal a passagem de quadrúpedes pela aldeia àquela hora tardia, muito menos por uma ruela estreita que, apenas, dava acesso às propriedades agrícolas. Em face disso, Acácio ficou confuso, sem saber muito bem onde se encontrava, como se despertasse de mais um dos seus, frequentes, pesadelos. Começou por fazer conjeturas sobre o que teria acontecido, mas como não encontrou explicação lógica, ajeitou a almofada, aconchegou as mantas e mudou diversas vezes de posição, à espera que o sono lhe sossegasse a mente. Porém, quando estava quase a adormecer, o silêncio voltou a ser interrompido. O matraquear atormentador das ferraduras sobre a rua em macadame voltou a ouvir-se em passada muito pausada. De passada em passada acabaria por se imobilizar junto ao seu casebre.
Agora estava acordado, tinha a certeza de que não se tratava de um pesadelo. Era mesmo real! Quem seria àquela hora da noite? Assaltantes? Uma força policial no encalce de algum criminoso? Algum viajante perdido em busca de auxílio? Sem resposta para as suas conjeturas, saltou da cama como que impulsionado por uma mola, mas enquanto aguardava que lhe batessem à porta e se identificassem, muitos pensamentos lhe passaram pela ideia. Enquanto esperava que a situação evoluísse manteve-se imóvel.
Entretanto, vieram-lhe à memória histórias de arrepiar que ouvira sobre as invasões francesas. Nessa época, as tropas de Napoleão vandalizavam casas e celeiros, dia e noite, saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Aos aldeões não restava outra solução que não fosse fugir ou pactuar com os invasores na esperança de que nada de pior lhes acontecesse.
Tentando conter a respiração e com a mente mergulhada nesses pensamentos aterrorizantes tateou o canhangulo, de carregar pela boca, que tinha junto à cama. Armou o cão e ficou de tocaia à espera que um qualquer vândalo lhe entrasse pela casa dentro. Estava convicto que o primeiro a invadir a sua intimidade seria abatido à queima-roupa. Depois logo veria, mas como não teria tempo para recarregar a espingarda resolveria a questão à cacetada. Aguentou alguns segundos na escuridão do seu pequeno espaço, sem que a situação evoluísse. Por fim, ouviu um murmúrio confuso de vozes que se misturavam com o chapinhar das pingos de chuva que caíam dos beirados, prenúncio de que algo de inesperado estaria para acontecer. Um arrepio percorreu-lhe a espinha que o impulsionou a antecipar-se aos acontecimentos. Abeirou-se, silenciosamente, do postigo que dava para a viela, conteve a respiração e abriu cautelosamente o caixilho. Meteu o cano da arma de fora e disparou para o vazio. O clarão, acompanhado de um estrondo aterrador, rasgou inesperadamente a escuridão e, ato contínuo, gerou movimentos inesperados que culminaram numa retirada em galope desenfreado. Logo a seguir, acendeu a candeia de azeite e recarregou apressadamente a espingarda, na expectativa do que pudesse surgir. Apesar da sua cautela não viria a se incomodado o resto da noite.
Acácio Mineiro tinha regressado, há cerca de dois anos, da Primeira Grande Guerra onde combatera na região da Flandres. À semelhança de muitos companheiros havia sido integrado no Corpo Expedicionário, sem estar minimamente preparado para a guerra. Na realidade, para além de teorias avulsas e de prática de ordem unida, tinha apenas no seu curriculum uma dúzia de disparos com a espingarda Mauser, efetuados em carreira de tiro. Em função disso e das condições deploráveis que ali encontrara, enterrado nas trincheiras, com água pelos joelhos e exposto aos gases utilizados tanto pelas forças inimigas, como até pelas amigas, acabaria por adoecer alguns meses depois. Contudo, só regressaria a Portugal após o Armistício, onde viria a chegar num estado lastimável, magro e doente, ao ponto de a família ter dificuldade em o reconhecer. Agora parecia curado das lesões físicas, mas os traumas das etapas vividas ainda estavam latentes.
A par das agruras que lá passara, parece que ainda teria tido um pequeno rasgo de sorte. Constava-se que, durante um combate, enquanto se abrigava nos escombros de um edifício parcialmente destruído pela guerra, teria encontrado uma caixa com cinquenta libras em ouro. Só mais tarde, depois de regressar a casa, viria a denunciar a posse do seu pequeno tesouro, trocando algumas libras por moeda corrente. Com o passar do tempo, a história do tesouro foi tomando forma e espalhou-se pelos negociadores de ouro, desencadeando a cobiça dos amigos do alheio que, devido àquele tempo difícil, estavam mais ávidos do que nunca. Foi preciso aquele susto para que Acácio Mineiro tomasse consciência disso e ficasse mais acautelado.

domingo, 14 de setembro de 2014

OUSADIA DE FINALISTA



Na véspera do dia da queima das fitas, como habitualmente, as ruas de Coimbra fervilhavam de gente. Muitos eram forasteiros que embora oriundos de outras regiões, galvanizados pelo ambiente estudantil, deixavam-se facilmente enamorar pelas tradições académicas. Com o aproximar da hora, alguns estudantes ocupavam-se dos últimos preparativos para o desfile das academias; outros, deambulavam pela cidade em ritual boémio e excessos de toda a ordem, como que anunciando o culminar da sua etapa estudantil. Entre esses, encontravam-se dois finalistas de direito, o Barnabé e o Esteves, acompanhados das respetivas namoradas, que com a hora do jantar a avizinhar-se decidiram petiscar.
Corria a década de setenta do século passado, num tempo em que o dinheiro não abundava nos bolsos de muitos cidadãos e para os estudantes a situação não fugia à regra, atendendo a que dependiam da mesada dos pais que por sinal bastante forretas, fruto das dificuldades que aquele tempo teimava em oferecer-lhes. Ora, os dois estudantes mesmo sabendo que não tinham dinheiro sentaram-se à mesa numa esplanada de uma tasca, preparados para comer e beber do melhor que a casa tinha para oferecer. Então, aproveitando a confusão gerada pela elevada afluência, resolveram impressionar as raparigas como se fossem homens endinheirados. Consultaram a ementa e depois de uma escolha bastante ponderada decidiram-se por uma caçoila de chanfana para os quatro. Esperaram pacientemente pelo empregado que, nesse dia, não tinha parança e encomendaram o pitéu. Ao mesmo tempo, solicitaram também as entradas e uma garrafa de vinho tinto alentejano, com o comentário de que aquele prato requeria uma pinga de qualidade.  
O dia fora movimentado e a barriga estava a reivindicar aconchego. Mas na presença das raparigas argumentavam que, na hora da despedida, queriam aferir a qualidade da confeção daquela iguaria regional, sobejamente elogiada por muitos apreciadores.
Enquanto aguardavam que o jantar lhes fosse servido, iam petiscando em amena cavaqueira, numa postura alegre e descontraída, longe de qualquer preocupação com o pagamento. Precisavam de impressionar os tasqueiros pela positiva que, normalmente eram muito experientes e detetavam os caloteiros até pelo olhar.
Logo que o empregado os serviu entregaram-se ao prazer de cada garfada com a voracidade de quem há muito não comia uma tal iguaria. Contudo, à medida que a caçoila ia ficando vazia, nos bastidores do espírito dos dois doutores apenas existia uma preocupação, como iam sair da encruzilhada em que se haviam metido. Mas depois do primeiro combate terminar, dedicaram-se à sobremesa com o mesmo apetite do prato principal.
No final, depois de bem saciados, estudaram, rapidamente, a melhor forma de se livrar da despesa que haviam contraído. Assim, logo que o empregado se ocupou de outros clientes, o Esteves acompanhado das raparigas deixou o aconchego da mesa que ocupavam em busca de um refúgio previamente acordado entre os dois homens. Mal o terreno ficou livre, Barnabé, o mais ousado, levantou o braço em direção ao empregado e solicitou a conta. Cheio de boa-fé, o pobre homem baixou a guarda e encaminhou-se para a caixa registadora instalada no interior do estabelecimento e quando regressou, num abrir e fechar de olhos, encontrou a mesa vazia. Correu inquieto tentando localizar os jovens doutores, mas não lhe voltaria a por a vista em cima que, entretanto, se diluíram na multidão.
Dias mais tarde, quando Barnabé se deslocava na alta coimbrã, deu de caras com o tasqueiro da caçoila de chanfana que de imediato lhe barrou a passagem, dizendo:
─       Com que então enchemos a barriguinha à custa aqui do Gilberto, não é!?
─       Ah… Ah… Ah…
─       Não aceito desculpas! Chegou a hora da cobrança, meu caro doutor! Ou pagas, ou faço sinal ao polícia! – concluiu Gilberto.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A ÚLTIMA PESCARIA


Quando nos deslocávamos de automóvel, com destino ao porto de Peniche, fomos informados de que o mar estava bastante agitado e de que não haveria, certamente, condições para a nossa habitual pescaria. Pelo teor da informação, concluímos que o nosso passeio quinzenal, rumo às ilhas Berlengas e Farilhões, estava em vias de não se concretizar. Mas, apesar disso, continuámos a viagem na esperança de que a ondulação, entretanto, amainasse e de que o barco pudesse deixar a barra. Que diabo, depois de uma noite perdida e uma viagem tão longa, com o pensamento nos cardumes que habitavam aquelas paragens, também merecíamos melhor sorte! Contudo, já não era a primeira vez que ficávamos em terra. Noutras ocasiões, fomos também surpreendidos por contrariedades semelhantes.
Naquela madrugada de setembro, chegámos ao cais por volta das cinco horas. Fazia algum vento e o céu estava estrelado. A maré estava na vazante e, aparentemente, a agitação marítima, dentro do porto, parecia normal. Por aquilo que nos era dado analisar nada parecia indiciar algo de anormal, mas os responsáveis pela embarcação eram experientes marinheiros e tinham outra opinião.
Depois de quase uma hora de espera e argumentação insistente com o mestre da embarcação, acabámos por colocar todo o material logístico a bordo. E, enquanto se procedia ao sorteio dos pesqueiros, reforçámos a dose de comprimidos anti enjoo para a eventualidade das coisas se complicarem. O sorteio tinha como objetivo evitar disputas pelos considerados melhores lugares, atendendo a que os doze pesqueiros disponíveis na embarcação tinham características de comodidade diferentes. No entanto, tudo dependia das correntes marítimas. Assim, logo que cada um ocupou a posição que lhe calhou em sorte, o navio desamarrou dando início à viagem. 
 Quando deixámos a barra, o dia ainda não estava totalmente claro, mas a ondulação começava a mostrar as suas garras. Contudo, logo que avançámos mar dentro, o vento aumentou e a ondulação tornou-se mais violenta. Só nesse momento, reconhecemos as agruras que nos estavam reservadas nesse dia. À medida que o barco sulcava as ondas, o convés ia sendo invadido por constantes enxurradas, que nos forçaram a procurar refúgio no espaço exíguo da cabina de pilotagem. Entretanto, com a turbulência a aumentar, começaram a surgir indisposições e alguns companheiros desceram a escadaria para se acomodarem no porão nos aposentos reservados aos tripulantes. Um sinal de desistência perante a adversidade, como era frequente ouvir dos mais resistentes, atendendo a que, como era costume, quem se acomodava no porão só de lá saía quando o navio atracava. Pelo meu lado, lá fui resistindo como pude, junto ao piloto partilhando o compartimento com os outros pescadores, onde nem sequer tínhamos espaço para mudar os pés.
Ao fim de quase uma hora de viagem, ainda sem terra à vista, a sonda indicou a presença de um cardume e de imediato soou a ordem para lançar a âncora para se dar início à pescaria. Em dias de ondulação normal, numa situação idêntica, não havia mãos a medir para iscar e tirar peixe. Agora, assim que a embarcação fundeou, tudo se alterou para pior. Os pescadores, eu incluído, não resistiram ao baloiçar constante, em todas as direções. Os movimentos eram de tal forma violentos e descoordenados que não havia modo de apaziguar a revolta rapidamente instalada no estômago de cada um. Lembrava uma interminável incontinência de bêbedos. A todo aquele transtorno orgânico, nem sequer escaparam os dois elementos da tripulação. Perante um cenário tão sombrio, questionei os companheiros se não teria havido engano nos comprimidos anti enjoo, mas nenhum deles me soube responder. Então, lembrei-me de um velho amigo, que me acompanhou noutras jornadas de pesca no porto da Figueira da Foz, que antes de deixar a barra, tomava sempre um cálice de vinho generoso, vulgarmente chamado de vinho do Porto, alegando ser o melhor antídoto contra a indisposição. Coincidência ou talvez não, ele nunca enjoava e regressava ao porto, sempre de semblante risonho, independentemente da agitação que se fizesse sentir.
Agora, o mais novato naquelas andanças implorou desesperado que o levassem para terra firme. Mas tal não viria a acontecer por falta de unanimidade na decisão. Uns alegavam que não era fácil encontrar cardumes como aquele e que logo que o navio estabilizasse a situação melhorava. Outros aconselhavam-no a que olhasse apenas em direção ao infinito e que assim iria facilmente ultrapassar o enjoo.
De facto, era indescritível a sensação de fragilidade e impotência que sentíamos perante a natureza adversa com que nos confrontávamos. Estávamos perdidos algures no meio do oceano dentro de uma casca de noz que adornava para todos os lados e rodeados de ondas impiedosas que, a cada momento, ameaçavam engolir a embarcação. Durante cerca de uma hora em que permanecemos naquele calvário dançante não consegui sequer preparar o material para dar início à pesca. Fiquei de tal forma perturbado que a minha luta se limitava a tentar controlar a indisposição que teimava em não me abandonar. Depois de cada vómito, ia ingerindo mais uma golada da minha reserva de água mineral tentando evitar que as entranhas me saíssem pela boca. Quando esgotei as duas garrafas de litro e meio, fui forçado a recorrer ao vinho que levava para acompanhar o almoço. O mais novato mergulhou também no porão de onde só viria a sair à noite aquando do nosso regresso ao porto de Peniche. Apesar de todos os meus contratempos, ainda presenciei o comportamento de alguns resistentes que, após cada lançamento faziam uma pausa para vomitar e, logo a seguir içavam para bordo o peixe que entretanto picara. Cenas quase inacreditáveis, que se foram repetindo ao longo daquela manhã atribulada.
Logo que o piloto concluiu que a situação estava a piorar, mandou içar a âncora e rumámos às Berlengas em busca da tão desejada terra firme. Assim que o navio atracou cada um procurou acomodar-se de modo a tentar recuperar-se do desgaste sofrido. Quem parecia não estar pelos ajustes eram as gaivotas que, em voos rasantes e ameaçadores, nos queriam impedir de descansar sobre as rochas nuas.
Depois de duas horas de descanso e de um pequeno lanche, para tentar estabilizar o organismo, a ondulação acalmou ligeiramente e acabámos por voltar ao baloiço no mar. A viagem foi curta. O navio acabaria por fundear perto do Forte de S. João Batista onde, abrigados do vento, pescámos exemplares de várias espécies e ali nos mantivemos até perto do fim do dia.
Por volta das dezoito horas, regressamos ao porto sem que nada de mais grave nos tivesse acontecido. O mais novato, que entretanto deixou as catacumbas do navio, não parecia o mesmo homem. Vinha completamente desfigurado. Lembrava um infeliz que acabara de deixar as masmorras da tortura. Quando chegou junto dos companheiros, apenas pronunciou a sua intenção de não repetir a experiência. Também para mim foi um dia complicado. Depois de pisar terra firme, o meu corpo parecia baloiçar, como se continuasse em alto mar.   

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA ROTA DO OCASO


Naquele dia, Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor, por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade. Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso, logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento, como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que, naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa, passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas, sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa, concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso, entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia. Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso encontrava facilmente solução.
Com o afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo seria o seu melhor aliado.




sexta-feira, 11 de julho de 2014

O VIVER SERRANO NO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX




"Com a chegada da recessão em 1930, as dificuldades agravaram-se e as populações, já anteriormente carenciadas, ainda ficaram mais fragilizadas. Desde o princípio do século que a instabilidade política era a causa apontada para o grande colapso em que viviam as comunidades rurais em Portugal. Agora, para esta agonia económica, teria contribuído essencialmente a crise a nível mundial, como reflexo ainda da Primeira Grande Guerra que doze anos depois, teimava em semear dramas.
Para tentarem fugir à penúria que não parava de os molestar, todos os homens válidos, mas sem pão no açafate, cujo passadio se limitava a um caldo de couves, boiando sem condimentos por o azeite se destinar à candeia fumarenta, com um pouco de broa migada para que o seu bolor se desvanecesse, todos eles olhavam para o horizonte com alguma esperança, sobretudo em época de ceifas, nas grandes planícies do Alentejo ou na província de Badajoz em Espanha."
In Madrugadas de Esperança.