terça-feira, 2 de setembro de 2014

A ÚLTIMA PESCARIA


Quando nos deslocávamos de automóvel, com destino ao porto de Peniche, fomos informados de que o mar estava bastante agitado e de que não haveria, certamente, condições para a nossa habitual pescaria. Pelo teor da informação, concluímos que o nosso passeio quinzenal, rumo às ilhas Berlengas e Farilhões, estava em vias de não se concretizar. Mas, apesar disso, continuámos a viagem na esperança de que a ondulação, entretanto, amainasse e de que o barco pudesse deixar a barra. Que diabo, depois de uma noite perdida e uma viagem tão longa, com o pensamento nos cardumes que habitavam aquelas paragens, também merecíamos melhor sorte! Contudo, já não era a primeira vez que ficávamos em terra. Noutras ocasiões, fomos também surpreendidos por contrariedades semelhantes.
Naquela madrugada de setembro, chegámos ao cais por volta das cinco horas. Fazia algum vento e o céu estava estrelado. A maré estava na vazante e, aparentemente, a agitação marítima, dentro do porto, parecia normal. Por aquilo que nos era dado analisar nada parecia indiciar algo de anormal, mas os responsáveis pela embarcação eram experientes marinheiros e tinham outra opinião.
Depois de quase uma hora de espera e argumentação insistente com o mestre da embarcação, acabámos por colocar todo o material logístico a bordo. E, enquanto se procedia ao sorteio dos pesqueiros, reforçámos a dose de comprimidos anti enjoo para a eventualidade das coisas se complicarem. O sorteio tinha como objetivo evitar disputas pelos considerados melhores lugares, atendendo a que os doze pesqueiros disponíveis na embarcação tinham características de comodidade diferentes. No entanto, tudo dependia das correntes marítimas. Assim, logo que cada um ocupou a posição que lhe calhou em sorte, o navio desamarrou dando início à viagem. 
 Quando deixámos a barra, o dia ainda não estava totalmente claro, mas a ondulação começava a mostrar as suas garras. Contudo, logo que avançámos mar dentro, o vento aumentou e a ondulação tornou-se mais violenta. Só nesse momento, reconhecemos as agruras que nos estavam reservadas nesse dia. À medida que o barco sulcava as ondas, o convés ia sendo invadido por constantes enxurradas, que nos forçaram a procurar refúgio no espaço exíguo da cabina de pilotagem. Entretanto, com a turbulência a aumentar, começaram a surgir indisposições e alguns companheiros desceram a escadaria para se acomodarem no porão nos aposentos reservados aos tripulantes. Um sinal de desistência perante a adversidade, como era frequente ouvir dos mais resistentes, atendendo a que, como era costume, quem se acomodava no porão só de lá saía quando o navio atracava. Pelo meu lado, lá fui resistindo como pude, junto ao piloto partilhando o compartimento com os outros pescadores, onde nem sequer tínhamos espaço para mudar os pés.
Ao fim de quase uma hora de viagem, ainda sem terra à vista, a sonda indicou a presença de um cardume e de imediato soou a ordem para lançar a âncora para se dar início à pescaria. Em dias de ondulação normal, numa situação idêntica, não havia mãos a medir para iscar e tirar peixe. Agora, assim que a embarcação fundeou, tudo se alterou para pior. Os pescadores, eu incluído, não resistiram ao baloiçar constante, em todas as direções. Os movimentos eram de tal forma violentos e descoordenados que não havia modo de apaziguar a revolta rapidamente instalada no estômago de cada um. Lembrava uma interminável incontinência de bêbedos. A todo aquele transtorno orgânico, nem sequer escaparam os dois elementos da tripulação. Perante um cenário tão sombrio, questionei os companheiros se não teria havido engano nos comprimidos anti enjoo, mas nenhum deles me soube responder. Então, lembrei-me de um velho amigo, que me acompanhou noutras jornadas de pesca no porto da Figueira da Foz, que antes de deixar a barra, tomava sempre um cálice de vinho generoso, vulgarmente chamado de vinho do Porto, alegando ser o melhor antídoto contra a indisposição. Coincidência ou talvez não, ele nunca enjoava e regressava ao porto, sempre de semblante risonho, independentemente da agitação que se fizesse sentir.
Agora, o mais novato naquelas andanças implorou desesperado que o levassem para terra firme. Mas tal não viria a acontecer por falta de unanimidade na decisão. Uns alegavam que não era fácil encontrar cardumes como aquele e que logo que o navio estabilizasse a situação melhorava. Outros aconselhavam-no a que olhasse apenas em direção ao infinito e que assim iria facilmente ultrapassar o enjoo.
De facto, era indescritível a sensação de fragilidade e impotência que sentíamos perante a natureza adversa com que nos confrontávamos. Estávamos perdidos algures no meio do oceano dentro de uma casca de noz que adornava para todos os lados e rodeados de ondas impiedosas que, a cada momento, ameaçavam engolir a embarcação. Durante cerca de uma hora em que permanecemos naquele calvário dançante não consegui sequer preparar o material para dar início à pesca. Fiquei de tal forma perturbado que a minha luta se limitava a tentar controlar a indisposição que teimava em não me abandonar. Depois de cada vómito, ia ingerindo mais uma golada da minha reserva de água mineral tentando evitar que as entranhas me saíssem pela boca. Quando esgotei as duas garrafas de litro e meio, fui forçado a recorrer ao vinho que levava para acompanhar o almoço. O mais novato mergulhou também no porão de onde só viria a sair à noite aquando do nosso regresso ao porto de Peniche. Apesar de todos os meus contratempos, ainda presenciei o comportamento de alguns resistentes que, após cada lançamento faziam uma pausa para vomitar e, logo a seguir içavam para bordo o peixe que entretanto picara. Cenas quase inacreditáveis, que se foram repetindo ao longo daquela manhã atribulada.
Logo que o piloto concluiu que a situação estava a piorar, mandou içar a âncora e rumámos às Berlengas em busca da tão desejada terra firme. Assim que o navio atracou cada um procurou acomodar-se de modo a tentar recuperar-se do desgaste sofrido. Quem parecia não estar pelos ajustes eram as gaivotas que, em voos rasantes e ameaçadores, nos queriam impedir de descansar sobre as rochas nuas.
Depois de duas horas de descanso e de um pequeno lanche, para tentar estabilizar o organismo, a ondulação acalmou ligeiramente e acabámos por voltar ao baloiço no mar. A viagem foi curta. O navio acabaria por fundear perto do Forte de S. João Batista onde, abrigados do vento, pescámos exemplares de várias espécies e ali nos mantivemos até perto do fim do dia.
Por volta das dezoito horas, regressamos ao porto sem que nada de mais grave nos tivesse acontecido. O mais novato, que entretanto deixou as catacumbas do navio, não parecia o mesmo homem. Vinha completamente desfigurado. Lembrava um infeliz que acabara de deixar as masmorras da tortura. Quando chegou junto dos companheiros, apenas pronunciou a sua intenção de não repetir a experiência. Também para mim foi um dia complicado. Depois de pisar terra firme, o meu corpo parecia baloiçar, como se continuasse em alto mar.   

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA ROTA DO OCASO


Naquele dia, Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor, por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade. Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso, logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento, como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que, naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa, passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas, sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa, concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso, entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia. Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso encontrava facilmente solução.
Com o afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo seria o seu melhor aliado.




sexta-feira, 11 de julho de 2014

O VIVER SERRANO NO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX




"Com a chegada da recessão em 1930, as dificuldades agravaram-se e as populações, já anteriormente carenciadas, ainda ficaram mais fragilizadas. Desde o princípio do século que a instabilidade política era a causa apontada para o grande colapso em que viviam as comunidades rurais em Portugal. Agora, para esta agonia económica, teria contribuído essencialmente a crise a nível mundial, como reflexo ainda da Primeira Grande Guerra que doze anos depois, teimava em semear dramas.
Para tentarem fugir à penúria que não parava de os molestar, todos os homens válidos, mas sem pão no açafate, cujo passadio se limitava a um caldo de couves, boiando sem condimentos por o azeite se destinar à candeia fumarenta, com um pouco de broa migada para que o seu bolor se desvanecesse, todos eles olhavam para o horizonte com alguma esperança, sobretudo em época de ceifas, nas grandes planícies do Alentejo ou na província de Badajoz em Espanha."
In Madrugadas de Esperança.




sexta-feira, 4 de julho de 2014

A FONTE MILAGROSA


Naquela manhã de maio, João Nabiça decidiu experimentar a potência do seu novo jeep numa viagem pela serra risonha onde para além do prazer da condução queria saborear a beleza da paisagem. Para além do passeio e do contacto com a natureza, queria, ainda, verificar a resistência da viatura, face à aridez do terreno, numa das diversas vias florestais de acesso à barragem de Santa Luzia. Tratava-se de um período do ano em que os montes serranos se revestiam de um colorido matizado deslumbrante que deleitava o olhar até do mais distraído passante.
A esposa que, nesse dia, não quisera experimentar a viatura para se furtar à constante censura do marido, relativa à sua condução, ia sentada a seu lado contemplando o rendilhado florido que cobria os montes quase no seu auge. Durante todo o percurso de ida, ambos conviviam com toda aquela beleza natural como se visitassem a região serrana pela primeira vez. Passaram ali noutras ocasiões, mas nunca se haviam apercebido de que a paisagem fosse tão arrebatadora, motivo que os forçou a paragens frequentes para o inevitável registo fotográfico.
Depois de um percurso térreo de grande inclinação em que João Nabiça aproveitou para fazer diversos testes ao veículo que, apesar do elevado grau de dificuldade, correspondeu às suas expetativas, chegaram ao Casal da Lapa. Assim, logo que Nabiça estacionou o carro decidiram percorrer o circuito da pista pedestre, construída junto à albufeira da barragem de Santa Luzia, exercitando as pernas e sorvendo o ar puro daquele lugar retemperador.  
Logo que o apetite os despertou para o almoço encaminharam-se para Fajão, uma aldeia de xisto de grandes tradições que, para além do património histórico de visita quase obrigatória, lhes reservava uma refeição como há muito não comiam. Depois das entradas de queijo de cabra curado e doce de chila, optaram por uma emanta de cabrito assado, guarnecido com batata alourada e castanha pilada, acompanhado com um bom tinto. No final, após se terem deliciado com uma sobremesa de tigelada na púcara, Nabiça rematou com um digestivo de aguardente medronheira. Uma iguaria, para auxiliar a digestão, de sabor ligeiramente adamado e aroma inconfundível, produzida na região serrana por gente experiente no fabrico artesanal.  
Quando se encaminhavam para a viatura, Nabiça notou que tinha exagerado nas bebidas alcoólicas. Não estava bêbedo, mas já se sentia um pouco tocado ao ponto de notar pequenas alterações de coordenação motora. Apesar disso, não comentou o assunto com a esposa para não a motivar a pegar no volante. Até porque ela também tinha bebido, embora em menor quantidade. Ao mesmo tempo, ele não tinha muita confiança na sua condução, especialmente, naquela zona montanhosa onde os precipícios se sucediam em cada curva da estrada que ao mínimo descuido poderiam originar um despiste com consequências imprevisíveis. Assim, sentou-se ao volante consciente do seu estado que julgava não ser impeditivo de guiar. De qualquer forma, tinha a noção de que naquela região o trânsito era bastante reduzido e também não era habitual ser confrontado com qualquer ação de fiscalização. Então, iniciou a viagem de regresso à Lousã, em marcha muito cautelosa para tentar minimizar qualquer imprevisto. No entanto, enquanto subia a serra, para uma altitude superior a mil metros e onde a pressão atmosférica já é notória, foi acometido de forte sonolência, mas, apesar disso, foi progredindo tentando contrariar o descanso que organismo lhe pedia.
Entretanto, para obedecer a uma necessidade fisiológica, foi forçado a interromper a marcha no momento em que circulava próximo do cimo da catraia do Farropo. Antes de reiniciar a viagem ficou a saborear a brisa fresca que soprava de norte, tentando, com isso, espantar a sonolência que o atormentava. Vento era coisa que não faltava por ali em qualquer época do ano. No dorso daquelas serranias era utilizado como força propulsora para produção de energia.
Enquanto se movimentava, na berma da estrada, apercebeu-se da existência de uma nascente contígua à via que brotava da fenda de uma rocha em caudal abundante. Como se o cantarolar da corrente lhe tivesse despertado o apetite, desceu o pequeno valeiro, encheu uma garrafa que ali encontrou e bebeu em pequenos goles. Minutos depois repetiu o enchimento e convidou a esposa para que lhe fizesse companhia, mas como aquela declinou ele esvaziou a garrafa sozinho saboreando a frescura e a leveza da água em lentos tragos.
Entretanto, o tempo foi passando e, meia hora mais tarde, notou que a sua disposição melhorara nitidamente. A sonolência e a perturbação visual tinham desaparecido. Em função disso, retomou a marcha, aparentemente, consciente para o exercício da condução.
Porém, quando se aproximava do entroncamento da Catraia da Martinha, lobrigou, por entre a ramagem dos pinheiros, a presença de uma força policial que se encontrava a menos de duzentos metros à sua frente. Ao ver os agentes, Nabiça estremeceu e interrompeu bruscamente a marcha com uma travagem que embora não tivesse sido ruidosa despertou a atenção da fiscalização.
De facto, estava longe de imaginar que, naquele local, em plena serra, iria ser surpreendido por uma operação de stop. Precisamente no dia em que tinha ingerido um copito a mais, uma situação que só muito esporadicamente acontecia. No mesmo instante, sentiu-se invadido por um misto de emoções contraditórias: se por um lado se recriminava por não ter tido cuidado suficiente com a bebida, por outro, insurgia-se contra a presença dos agentes de autoridade logo num local que não lhe deixava alternativa de desvio. Pensou em trocar de lugar com a esposa, mas, ao mesmo tempo, descartou a ideia dado que, certamente, os agentes iriam notar. Ao mesmo tempo, equacionava uma forma de se desenvencilhar da situação em que estava metido, talvez, invertendo o sentido de marcha para se por em fuga. Tinha uma viatura apropriada para circular por qualquer estrada florestal, onde não seria facilmente alcançado, mas corria o risco de vir a ser confundido com um vulgar criminoso, coisa que nem sequer podia imaginar que lhe acontecesse. Considerava-se uma pessoa responsável e, como tal, a sua única solução, seria assumir as consequências que pudessem resultar da fiscalização. Nos poucos segundos que mediaram a sua reflexão tudo isso lhe passou pela mente. Mas, de repente, lembrou-se de que não tinha averbado qualquer infração no seu cadastro de condutor e decidiu prosseguir o caminho na expectativa de que isso lhe servisse de atenuante.
Então, como tanto receara, mal entrou na Estrada Nacional 112, foi logo intercetado pelos agentes de autoridade. Ao ser questionado se havia ingerido bebidas alcoólicas respondeu com realismo. Não valia apena mentir até porque o aparelho não se deixaria, obviamente, iludir pela sua negação. Porém, a sua ansiedade era de tal modo que, depois de sopro, ficou com os olhos vidrados no aparelho como se esperasse algo muito decisivo na sua vida de condutor. Mas o resultado surgiria quase de imediato, com a indicação de 0,35 g/l. Um resultado perfeitamente dentro dos limites legais para poder exercer a condução. Nabiça nem queria acreditar naquilo que ouvia da boca do agente, quando aquele lhe deu conta do resultado.
Só depois de ter sido autorizado a continuar a viagem, comentou com a esposa não só o mau bocado que passara provocado pelos efeitos do excesso de bebida como, ainda, o susto que apanhara no ato da fiscalização. Ao mesmo tempo, não se cansava de fazer conjeturas sobre o resultado do teste e só encontrou uma explicação razoável - as excelentes propriedades da água que tinha ingerido. De facto, logo que a primeira golada deslizou pela garganta, notou uma reação quase imediata que lhe trouxe a boa disposição, razão que julgava suficiente para acreditar naquilo que lhe acontecera.
No dia seguinte, João Nabiça mandou fabricar uma placa metálica com a inscrição seguinte: “Fonte Milagrosa”. Não tardou em arranjar uma oportunidade para voltar à serra e colocar a placa, junto à fonte, bem à vista de qualquer transeunte, como se com esse gesto fizesse um agradecimento à generosidade da natureza pela pureza daquela nascente.  
Dois meses mais tarde, por motivos desconhecidos, a placa com a indicação da "Fonte Milagrosa" viria a desaparecer.