Quando me afoitei na torrente fluvial, Entraste em pânico e acudiste, Com a dádiva da amizade de animal, Que entre os homens já não existe.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
domingo, 6 de novembro de 2016
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
O FOGUETE INESQUECÍVEL
Foi na Ribeira de Carvalho que Januário aprendeu a nadar e
a distinguir as várias espécies piscícolas que coabitavam naquelas águas frias
e límpidas que, quilómetros a jusante, engrossavam o caudal do Zêzere. Tinha
apenas sete anos quando começou a chefiar um bando de potenciais nadadores,
todos do seu escalão etário, e todos nascidos na mesma aldeia, num tempo
em que a natalidade ainda não estava em decréscimo. Deixavam o terreiro onde jogavam
à bola e encaminhavam-se para o poço da Foz da Costa, que se situava no
sopé da povoação e afastado das casas mais de quinhentos metros. Embora se
deslocassem ali muitas vezes durante o ano, era no verão, nas férias grandes,
que faziam uma aprendizagem mais intensiva e por muito que os pais lhes
atribuíssem funções de apoio à atividade agrícola eles acabavam sempre por ir
lá dar um mergulho.
Era naquela piscina natural, de leito rochoso, que
organizavam campeonatos de natação como uma verdadeira competição em que as
provas consistiam em nadar ao desafio, de uma margem para a outra, para ver
quem chegava primeiro. Por vezes, mergulhavam para concluir qual deles se
aguentava mais tempo debaixo de água. Paralelamente a isso, também se dedicavam
à pesca tanto à linha como à mão, de trutas, enguias e bordalos. Quando
pescavam à mão mergulhavam e vasculhavam as tocas, uma a uma, para capturar os
peixes que se abrigavam em incontáveis esconderijos. Nem os alfaiates,
minúsculos insetos pernaltas, que se movimentavam livremente à superfície sem
nunca se afundarem, se conseguiam furtar a toda aquela agitação.
No dia em que Januário foi aprovado, com distinção, no
exame da quarta classe, na década de cinquenta do século passado, recebeu, do seu
padrinho, um porta-moedas recheado com uma nota de vinte escudos. Embora se
tratasse de uma razoável quantia para a época, era uma lembrança merecida atendendo
ao seu bom aproveitamento ao longo dos quatro anos de vida escolar que ditava a
sua transferência para a cidade a fim de continuar os estudos no Ciclo
Secundário.
Assim que viu a sua nota de aprovação afixada na
vitrina não cabia em si de contente pelo culminar daquela etapa. Então, logo
que se achou na posse da dádiva, correu à mercearia do ti Álvaro onde comprou
três foguetes e uma caixa de fósforos. Depois de pedir, àquele, uma opinião
sobre o local mais adequado para o lançamento meteu-se a caminho como um verdadeiro
perito em pirotecnia. Durante a festa da sua aldeia vira, com muita atenção,
como o fogueteiro fazia o lançamento e achava que esse conhecimento seria
suficiente.
Quando se preparava para levar por diante os seus
intentos e acender o primeiro rastilho, os comparsas que o acompanhavam
deram-lhe outra sugestão e Januário resolveu pensar duas vezes antes de lançar
os foguetes. Assim, depois de estudar o que aqueles lhe sugeriam, acabaria por concordar
dar à pirotecnia uma utilização diferente.
Na tarde do dia seguinte, os garotos partiram para o seu habitual
mergulho no Poço, munidos dos foguetes e prontos a por em
prática aquilo que tinham acordado. Durante o itinerário, aproveitando o
silêncio da hora da sesta, apenas quebrado pelo canto da cigarra, iam debicando
os vagos de uva que cresciam nos parreirais, a par de outros frutos da época:
pêssegos, peras e ameixas, que começavam, aos poucos, a amadurecer despertando a
curiosidade, e o paladar, dos pequenos e até dos adultos. De quando em vez
surgiam frases soltas, em sussurro, no meio do bando: “estes cachos já estão doces”,
“estas peras são boas”, “os pêssegos já estão maduros”, “tenham cuidado que o
ti Joaquim pode estar à espreita”. Era normal, logo que chegava o pintor, os
proprietários, quase sempre de idade avançada, exerciam maior
vigilância sobre os pomares, mas a garotada levava quase sempre os seus intentos por diante
perante a impotência daqueles.
Naquele dia, o Sol escaldava e a rega dos milheirais
absorvia quase todo o caudal da ribeira dificultando, assim, o movimento dos
peixes que, nos locais com menor profundidade, não conseguiam contornar as
pedras, juncos e embude. Mas para os garotos, isso não era obstáculo, antes
pelo contrário, caminhavam pelo areal com maior desenvoltura e apanhavam muitos
bordalos que ficavam encurralados em pequenos charcos ao longo daquele curso de
água.
Assim que chegaram ao poço e se abeiraram do açude
secular, edificado em pedra de xisto sobre estacaria de pinho, a água
fervilhava de trutas que assustadas pela proximidade da troupe rapidamente se
refugiaram numa abertura sob o paredão. Aquela agradável visão, pela quantidade
de salmonídeos, ainda, gerou no grupo maior entusiasmo e Januário, pondo em
evidência a sua condição de líder, decidiu, de imediato, fazer ali um
rebentamento. Tratava-se de uma toca que, apesar de se situar a mais de dois
metros de profundidade, era perfeitamente visível das margens do poço na época
de verão.
Com a desenvoltura que os caraterizava, treparam a um
salgueiro que crescia entre a ribeira e as terras de semeadura e colheram uma
vara com o comprimento suficiente para chegar à abertura escolhida. Depois,
Januário, o mais irreverente do bando, amarrou, com atilhos de junco, a cana do
foguete à vara, acendeu o rastilho e mergulhou o conjunto na água avançando em
direção ao local que pretendia atingir com a detonação. Assim que o engenho
explosivo ficou submerso, o atilho cedeu à pressão da água e do rastilho.
Então, aconteceu aquilo que eles não contavam: o foguete libertou-se da vara e
ficou a voar, completamente desgovernado, à volta do poço. Só decorridos alguns
segundos, ganhou equilíbrio e retomou a finalidade para que fora concebido.
Ainda assim, deixou a água debaixo de uma densa nuvem de fumo e cheiro a
pólvora. Mas, entretanto, como havia decorrido demasiado tempo o foguete subiu,
apenas, alguns metros e desintegrou-se, libertando bombas em todas as direções.
As explosões sucediam-se a um ritmo quase sem intervalo e com tal intensidade que
os garotos, autores da proeza, ficaram de tal modo desorientados que desataram
numa correria infernal, milheiral adentro, derrubando as canoulas, com dois
metros de altura, que se lhes deparavam pela frente.
Logo que terminaram os rebentamentos, que ecoaram ao
longo das quebradas em redor, o bando começou aos poucos a reagrupar junto ao
poço onde foram surpreendidos pelo Ti Justino que, meio aturdido, abandonou o lameiro contiguo, onde se ocupava da rega, para indagar o sucedido. Aquele,
depois de se inteirar do que acontecera, em jeito de corretivo, ameaçou
denunciá-los. Os garotos, um pouco cabisbaixos, depois de terem escondido os
dois foguetes que sobraram, encaminharam-se para o povoado mais cedo do que o
habitual.
sexta-feira, 5 de agosto de 2016
sexta-feira, 1 de julho de 2016
TEMPOS DE PENÚRIA
Uma década após o fim da segunda guerra mundial a
recuperação económica em Portugal ainda não era notória e algumas franjas da
população continuavam mergulhadas em profunda agonia. Apesar de haver muito
trabalho os salários eram tão baixos que, mesmo trabalhando de sol a sol, mal
davam para a alimentação.
Nessa época, Miguel Estudante tinha onze anos e era o
mais velho de nove irmãos, cinco rapazes e quatro raparigas. Frequentava a
segunda classe sem perspetiva, nesse ano, de passar para a terceira. Apesar do
corpo franzino não indicar a sua idade era desenrascado e vivaço, fruto de uma
vivência conturbada própria do meio destruturado em que nascera. Morava com a
família, numa pequena barraca, sem as mínimas condições de
habitabilidade. O pai, operário fabril especializado, tornara-se um alcoólico
inveterado, com total desprezo pelas necessidades familiares. Só trabalhava
quando lhe apetecia e em contrapartida não se cansava de engravidar a esposa
que pouco mais fazia do que procriar e a um ritmo que quase não lhe deixava
tempo para cuidar de quem trazia ao mundo.
Em função disso, todos os filhos do casal passavam por
muitas carências dado que naquele tempo o apoio social não levava em conta as necessidades do cidadão e quando a fome apertava cada um desenrascava-se como podia. Os que estavam em
idade escolar faltavam muitas vezes às aulas para pedir e roubar, tudo o que
fosse comestível, fruta e hortícolas.
Num dia de março, ao cair da noite, o progenitor de
Miguel Estudante chegou a casa, mais uma vez, embriagado e quando os vapores do
álcool lhe esquentavam a cabeça não era preciso muito para distribuir pancada,
tanto pela mulher como pelos filhos. Dessa vez, o desentendimento surgiu a
pretexto de uma queixa que o professor lhe fizera relativa ao Miguel e vai daí,
deu-lhe uma tareia sem dó nem piedade. A mãe ainda tentou proteger o filho, que
no meio da crise era o esteio da família, mas levou pela mesma tabela. Os
restantes escaparam ilesos, porque os mais crescidos conseguiram escapar a tempo
e os pequenitos esconderam-se num canto do casebre até os ânimos serenarem.
Na manhã seguinte, Miguel Estudante levantou-se com o
corpito dorido. As hematomas eram bem visíveis, tanto na cara como no tronco. A fome e as
dores não o deixaram pregar olho a noite toda. Nada a que já não estivesse
habituado, tanto na escola como em casa, só que agora o castigo fora muito
severo.
Como não conseguia dormir saltou bem cedo da tarimba que partilhava com os irmãos. Tinha os olhitos inchados de tanto chorar e o
estômago a reivindicar comida. Vestiu roupita aligeirada, pegou na sacola
escolar, feita de pedaços de cotim, onde guardava: um par de tamancos para
utilizar à entrada da escola, o livro da segunda classe que pertencera a uma antiga aluna sua vizinha, um caderno de linhas, giz e o pequeno quadro de ardosia, onde
aprendera a rabiscar as primeiras letras e algarismos e, logo a seguir, partiu.
Ao abandonar a barraca bateu a porta com força numa espécie de represália perante o pai castigador que de imediato ripostou do
interior: "Oh malvado! Tu queres brincar comigo, mas logo apanhas mais!" Para
não agravar a sua difícil situação, o garoto prosseguiu o caminho que
programara, sem olhar para trás nem responder, em direção ao extenso laranjal
que matizava de branco, verde e laranja a margem direita do Mondego. Ali, com o cuidado
que lhe era peculiar, passou um olhar por toda a área do seu horizonte visual e,
quando concluiu que tinha o terreno livre, trepou a uma laranjeira onde colheu
uma dezena de laranjas. Assim que desceu diluiu-se na caniça, que crescia
frondosa junto ao rio, para não ser notado enquanto enchia a barriguita
faminta. Quando se achou satisfeito, guardou as que sobraram na sacola e
continuou a caminho da escola.
À semelhança dos irmãos, Miguel Estudante andava
sempre descalço e as cicatrizes nos dedos dos pés documentavam muitos
tormentos. Mesmo ali, ao cruzar a estrada do campo, deu uma topada numa pedra
mais saliente que lhe provocou dores insuportáveis e uma unha de um dedo do pé
parcialmente arrancada. Como se a agonia que o acompanhava, desde a véspera, já
não fosse suficiente, ainda se viu a contas com mais aquele acidente. Não
aguentou, sentou-se no chão de lágrimas nos olhos pressionando o dedo aleijado
tentando, tanto quanto possível, estancar a hemorragia e minimizar o
sofrimento.
Logo que se recompôs retomou a marcha a coxear,
deixando, aqui e acolá, uma mancha de sangue que lhe ia escorrendo do dedo. Ainda
tentou utilizar os tamancos, mas logo reconheceu que lhe dificultavam os
movimentos e voltou a guarda-los na sacola. Apenas os trazia consigo porque o
professor não lhe permitia que entrasse na escola descalço. De repente,
lembrou-se dos deveres que não fizera e estacou aterrorizado. Apesar de já
estar familiarizado com a disciplina escolar, nunca conseguia prever qual
seria a reação do professor, face à falha de um aluno. Especialmente com ele que faltava muitas vezes e era conhecido na escola pelo seu comportamento
irreverente. De facto, nunca podia esperar qualquer tolerância ainda que
justificada. Sempre que prevaricava a resposta do docente não se fazia esperar
e quando tocava a bater não era nada meigo. Então, depois de refletir, decidiu
faltar às aulas e no dia seguinte justificar a falta com uma desculpa qualquer,
pelo menos, se não fosse atendido, adiava a punição.
Assim, Miguel Estudante esqueceu rapidamente a escola
e caminhou em direção ao rio. Logo que ali chegou, pegou numa cana de pesca que
guardara na caniça, procurou isco na ínsua e entregou-se à luta em busca da
refeição. Não era só a falta de vocação para as letras que o levava a fugir da
escola, as carências alimentares também pesavam e de que maneira.
A pesca para ele não era um divertimento, mas uma
forma de arranjar alguma coisa para enganar o estomago. Por isso, ali, esquecia
facilmente o mau vício do pai, os deveres que trazia para fazer em casa e os
castigos que professor lhe aplicava. Só a fome teimava em o acompanhar para
qualquer sítio que fosse.
Por capricho da natureza, a pescaria nesse dia iria
correr bem. Os barbos e as bogas, naquela fase do ano, próximo da desova,
pegavam no isco com relativa facilidade e ele sabia tirar partido disso. Assim,
acendeu uma fogueira no areal perto da água e grelhou alguns exemplares que
mesmo sem sal lhe souberam ao melhor pitéu.
Dias mais tarde, durante as aulas, em sequência de uma
pergunta a que não soube responder, o professor sentenciou-o, mais uma vez, a
dez reguadas em cada mão. Foi o transbordar do copo, já não aguentava tanta
tareia, nem sequer podia ver o ponteiro de marmeleiro que muitas vezes lhe
vergastava as costas e muito menos a palmatória que, era feita em madeira de
carvalho francês e, magoava que se fartava. Tinha que fazer alguma coisa para
deixar, bem clara a sua revolta, de apanhar pancada por tudo e por nada, ao
ponto de ser o bombo da classe.
Em função disso, logo que o castigo lhe foi aplicado,
no seu habitual estilo rebelde, aproximou-se da carteira onde se sentava, pegou
no tinteiro metálico de caneta de aparo, ali instalado, e atirou-o, com toda a
força que pode imprimir, à cabeça do docente que, ao ser atingido, ficou
estonteado pela dor e pela surpresa. Logo a seguir, antes que aquele lhe
pudesse deitar a mão desatou a correr e saiu porta fora. Nessa noite não dormiu
em casa, acomodou-se numa barraca abandonada junto ao rio que era o seu refúgio habitual quando desconfiava que vinho do pai se iria entornar para o seu lado.
Entretanto, em sequência da queixa apresentada pelo
professor à direção escolar, relativa à agressão de que fora vítima, Miguel
Estudante foi enviado para o colégio da tutoria de menores, onde permaneceu
três meses, em regime fechado e sob regras rígidas de disciplina. Ali, perdeu o
privilégio de fazer o que lhe apetecia, mas em contra partida deixou de passar fome, calçou os
primeiros sapatos e vestiu uma farda devidamente limpa e engomada. Finalmente,
começava a perceber que não podia fugir à disciplina que lhe era imposta, mas
não iria ser fácil controlar e seu temperamento rebelde.
Logo que terminou o castigo regressou às origens e à
vida libertina que levava até então que se dividia entre pedir esmola de porta
em porta e roubar. Tudo em busca de alimentos. Até parecia de que nada lhe
valera aqueles meses de corretivo, mas a realidade era bem mais cruel,
atendendo a que as necessidades falavam mais alto. Como não podia deixar de
ser, ao fim de pouco tempo, voltaria a ter complicações.
Certa madrugada, a fome apertava e a barraca
fervilhava em constante desassossego. Então, Miguel Estudante pegou num cesto
de verga e partiu em busca de alguma coisa com que pudesse alimentar os irmãos.
Ao chegar junto à Quinta dos Muros não viu ninguém por perto e tratou logo de
engendrar uma forma de esventrar a rede de vedação para ir em busca de algum
produto comestível. Já no interior, começou por arrancar batatas e terminou a
apanhar uvas. Mal encheu o recipiente apressou-se a abandonar o local, receando
que surgisse algo com que não contava. Até ali tudo correu bem, no entanto,
quando se esgueirava pelo buraco que abrira foi surpreendido pelo proprietário
que lhe barrou a passagem. Até parecia que já o esperava como cão espera o
coelho à porta da toca. O garoto bem lutou para se libertar, mas aquele
agarrou-o pelo cabelo com tal determinação que não lhe deu qualquer
possibilidade de fuga. Então, não satisfeito com os acoites que lhe aplicara,
conduziu-o até ao casebre onde Miguel morava para exigir uma indemnização ao
pai, de prejuízos e atrevimento, de tal modo avultada que impossibilitou
qualquer pagamento. Tudo isso sem levar em conta que se tratava de uma família
indigente sem condições económicas para alimentar tantas bocas. Como não foi
ressarcido correu a entrega-lo à polícia alegando que não lhe podia perdoar dado que estava cansado das visitas dos larápios.
Em sequência
desse pequeno golpe, Miguel Estudante foi reencaminhado para a tutoria por mais
algum tempo. Sendo posteriormente enviado para um colégio de correção na
capital, onde permaneceu até atingir os dezoito anos de idade. Ali, para além
da profissão de encadernador, apreendeu a ser homem.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
domingo, 5 de junho de 2016
INQUILINO QUEZILENTO
Longe iam os
tempos em que o velho Virgílio se dedicara à pesca do bacalhau nos mares
gelados da Noruega e Terra Nova. Na época, passava seis meses a fio na
imensidão atlântica enfrentando o perigo constante e o trabalho árduo, quase
sem descanso. Com o passar lento dos dias, acabara por se habituar ao transtorno próprio da vida no mar: longe da família, sujeito aos humores da natureza, laboração em equipa, convívio limitado à tripulação do navio, solidão e contratempos de vária ordem. Agora, a saúde débil e os seus
sessenta e quatro anos de idade já não lhe permitiam tomar parte nessa
aventura. Assim, sem outros meios de subsistência, ia sobrevivendo com o pouco
que retirava da faina costeira, quando a saúde lho permitia.
O dinheiro que
angariara na pesca longínqua investira-o na compra de uma vivenda nas
imediações da Figueira da foz, num local aprazível, perto do mar, constituída
por duas habitações com acessos independentes. Situação que lhe permitia ocupar
o rés-do-chão e destinar o primeiro andar para rendimento. Com essa ideia em
mente, esperava alugar aquela parte da casa a gente de boas contas, ordeira e
respeitadora, para obter uma ajuda para as despesas quotidianas. Uma espécie de
complemento do ordenado para os dias de incerteza com que era confrontado. Mas
nem tudo viria a correu como previra e o investimento de muitos anos de trabalho árduo
acabaria por se transformar no maior pesadelo da sua vida.
Tudo começara no
momento em que o velho Virgílio arrendara o primeiro andar ao Macário. Um forasteiro que, quando ali chegou, alegou integrar uma equipa de monitores num curso de formação profissional, uma forma de aprendizagem para desempregados que à época movimentava milhões. Apesar de se
tratar de um desconhecido, sem referências pessoais, Virgílio não lhe exigira fiador como seria normal esperar. Entendera assim porque, era um homem de sólida
formação moral que, sempre lidara com gente de boa índole e em função disso,
confiara em tudo o que o forasteiro lhe dissera. Depois do primeiro contacto com o Macário ficou com a ideia de que se
tratava de um homem culto e educado. Apenas um senão, que, ainda assim, não fora impeditivo ao contrato de arrendamento, aquele tinha conversa para dar e
vender, ao estilo de um politico à espera de poleiro. Contudo, mais tarde, viria a
revelar-se uma pessoa velhaca e quezilenta, que criava guerras por tudo e por
nada.
Nos dois
primeiros anos, o relacionamento entre ambos, apenas, se limitou ao indispensável entre
senhorio e inquilino, mas pautou-se por um tratamento
civilizado nunca imaginando o que o futuro lhes reservava. Assim, a partir do momento em que Macário comprou, também, a sua
própria moradia tudo se alterou para pior. A casa arrendada ficou vazia e aquele deixou de pagar
pontualmente a renda, como o fizera até aí, sem nunca se justificar. Pagava um
mês e ficava a dever dois e a dívida foi-se acumulando, não se vislumbrando no
horizonte forma do inquilino pagar as rendas vencidas. Em função disso, antes
de recorrer à justiça, o velho Virgílio tentou, então, entender-se com aquele
visando reaver o andar de que era proprietário, mas Macário, aproveitando as leis de arrendamento então vigentes, exigiu uma
indemnização de tal modo avultada que impediu, à partida, qualquer tipo de
acordo entre ambos.
A partir daí, o
inquilino resolveu infernizar a vida ao senhorio recorrendo a métodos e
picardias impensáveis. Começou por ir ao apartamento, a horas
tardias, arrastar móveis e dar pancadas no soalho, com o único objetivo de lhe
perturbar o descanso. Confusão que ia repetindo, quase diariamente, dando
origem a discussões e ameaças de todo o tipo que frequentemente culminavam com
a intervenção da polícia, ainda assim, sem qualquer resultado visível.
Mais tarde, para evitar confrontos físicos que se anunciavam a todo o momento, o inquilino viria a mudar de tática com resultados ainda mais devastadores. Com o apoio de
um técnico de eletrónica instalou um aparelho sonoro com a finalidade de
reproduzir o canto da rola. Uma cantoria repetitiva e perturbadora que se ouvia
dia e noite. Ao fim de pouco tempo e em consequência de todas essas tropelias,
o velho Virgílio não aguentou, acabando no hospital a contas com um esgotamento.
A estrutura mental de um homem que, ao longo da vida, resistira, incólume, a
impensáveis agruras e provações de toda a ordem, acabaria por ruir, de um
momento para o outro, face à crueldade daquele malfeitor.
Logo que
Virgílio sentiu algumas melhoras regressou a casa parcialmente recuperado. No
entanto, foi aconselhado, pelo médico, a afastar-se o mais rápido possível do
centro do conflito para, não só, evitar uma recaída, como ainda, preservar a
sanidade da esposa que também dava indícios de desgaste. Virgílio fora sempre
um homem pacífico e respeitador, mas cada vez que era confrontado pelo mau
carácter do Macário notava o seu habitual temperamento ordeiro prestes a
desmoronar-se. Tal só ainda não havia acontecido devido à pronta intervenção da
esposa, que não olhava a meios, para o impedir de cometer uma loucura.
Depois de
ponderar a situação, não pensou duas vezes, pegou no indispensável e foi
acomodar-se na barraca que possuía perto da praia e que muitas vezes servira de
apoio à sua atividade pesqueira. Embora tivesse condições bastante precárias, daria para
aguentar o período de verão. Seria preferível fazer esse sacrifício temporário
do que continuar a viver no inferno que o inquilino lhe arranjara. Pelo menos
até decisão do processo que, entretanto, remetera ao tribunal e do qual esperava uma solução.
Ao fim de
algumas semanas de convalescença, Virgílio continuava a não ter condições para
voltar ao trabalho. Estava longe da fonte do seu calvário, mas parecia que o
seu drama cada dia se adensava mais. Por mais que a esposa suavizasse os
acontecimentos e o aconselhasse a não se enervar a única ideia que não lhe
saía da cabeça era a de acertar contas com o inquilino.
Um dia, cansado
da sua inatividade e aproveitando a tarde que convidava a um passeio à beira
mar, resolveu meter-se a caminho para tentar fugir ao abismo das suas
cogitações que não lhe davam sossego nem um momento. Por mais que tentasse, não
conseguia aceitar as regras legais que, na prática, pareciam favorecer mais os
prevaricadores e desonestos do que as pessoas que cumpriam com os seus deveres
de cidadania.
Ao fim de meia
hora em que percorreu, à toa, locais por onde não passava há muito e deu por si
junto à tasca do ti Luís. Depois de alguma hesitação, resolveu entrar e beber um
tinto na esperança de que o vinho lhe desse alguma tranquilidade de espírito.
Logo a seguir, encaminhou-se para o paredão que separava o leito do rio Mondego
da zona de praia onde vários pescadores, de pesca à linha, iam matando o tempo à
espera de um peixe que tardava em picar. Ali, escolheu um local desocupado,
sentou-se numa pedra voltado para a zona antiga da cidade, acendeu um cigarro e
ficou a contemplar o movimento, constante, das embarcações que entravam e saíam
do porto da Figueira da Foz. Perante aquele cenário que lhe era familiar,
deteve-se a saborear a aura amena que soprava de sul. Em poucos segundos,
perdeu-se num emaranhado de pensamentos nostálgicos do tempo em que também ele
regressava ao porto, ansioso por abraçar a esposa e com o navio a abarrotar de
peixe que era garantia de algum dinheiro na carteira. Como era feliz
nessa época! Era mais novo, tinha saúde de ferro e as preocupações não lhe
roubavam o sono.
A brisa de
norte que, a meio de cada tarde, costumava varrer toda a orla costeira e
antecipar a debandada dos banhistas que, naquela época do ano, enchiam as praias da
região, não se fez sentir nesse dia. Em função disso, o tempo foi passando
ligeiro e quando o velho Virgílio deu por si já o crepúsculo caía quente sobre
a maré baixa, inundando toda a área ribeirinha com um cheiro a maresia e a esgotos.
Com o entardecer, chegavam a terra firme nuvens densas de mosquitos, famintos, que não se cansavam de espetar o ferrão venenoso em qualquer transeunte. Embora
não se sentisse importunado por aquela praga invasora, acendeu mais um cigarro,
levantou-se e ao dar os primeiros passos quase esbarrou com o Albino, um antigo
companheiro da faina que já não via há muito tempo. Embora aquele fosse
bastante mais novo do que ele, estava a contas com o desemprego de longa
duração. Depois da decisão política de abate de grande parte da frota
pesqueira, nunca mais arranjara trabalho na pesca longínqua, ia sobrevivendo de
pequenos biscates sem qualquer regularidade nem vínculo laboral.
Mal os dois
homens se encararam, cumprimentaram-se efusivamente, trocaram algumas palavras
e partiram, a caminho da tasca do ti Luís, a pretexto de um brinde ao
reencontro.
Enquanto o
tinto, de origem alentejana, lhes ia escorregando pela garganta, Albino foi-se
inteirando da situação do velho Virgílio e ofereceu-se de imediato para o ajudar
a meter Macário na devida ordem. Até porque era uma pessoa com quem ele nunca
simpatizara. Assim, não esperaram por outra oportunidade. Logo que terminaram a
bebida, partiram ao encontro daquela criatura que não parava de infernizar a
vida ao pobre Virgílio.
Nessa noite,
Macário dava entrada no hospital com vários traumatismos. Ao ser questionado
pela polícia sobre o que lhe acontecera, esclareceu, simplesmente, que fora
vítima de uma queda.
Uma semana mais tarde, o velho Virgílio foi
surpreendido por uma carta, manuscrita e assinada pelo Macário, pondo fim ao
contrato de arrendamento e fazendo a entrega da chave da casa. No final, em
letra igualmente legível, um pedido de desculpas sobre as maroteiras que lhe
fizera.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
domingo, 15 de maio de 2016
sexta-feira, 6 de maio de 2016
A DEFORRA DA NATUREZA
O
Outono estava já a meio mas a temperatura mantinha-se alta, apoiada num Céu sem
nuvens, onde o Sol se mostrava inclemente, pouco disposto a oferecer tréguas. O
silêncio era total; nem ramos agitados pelo vento ou sequer uma ligeira brisa que
aliviasse a canícula. Com exceção da torga magoriça, de floração serôdia e
prolongada, o mato em redor exibia um tom áspero e chocalhante, implorando por
chuva.
Cansado,
com as forças a minguarem-se-lhe, transpirando abundantemente, Jacinto enveredou
por um carreiro de cabras que serpenteava as courelas do Vale da Carreira, para
regressar mais rapidamente à sua aldeia que distava dali cerca de dois
quilómetros. Ao ombro transportava uma arma de um só cano, com o cão erguido,
em posição de fogo. Pendurada no cinturão, uma perdiz balanceava como pêndulo
em relógio. À sua frente, uma cadela pouco interessada, igualmente despojada de
energias, língua de fora, farejava ao desfastio como se entendesse que a
jornada estava concluída. A Tita, perdigueira de raça épagneul-breton, olhava,
receosa, para os tojos que via à sua volta, cujos espinhos, quando se
aventurava por entre o mato, lhe picavam a pele, fazendo-a ganir, dorida. Que
delícia, – pensava ela – regressar à casa do dono para se refastelar no sofá
acolhedor, onde a mãe de Jacinto, atenta e prestável, como pajem em ambiente
real, era pródiga em mimos.
De
súbito, uma voz feminina fez-se ouvir pelo valeiro:
–
Jacinto! Jacinto!
Como
nada visse ao longo do caminho, olhou em redor até que se deteve numa figura de
mulher que se desenhava num plano inferior, entre o carreiro e o riacho.
–
Ah!... És tu, Deolinda?
–
É verdade! Quem esperavas que fosse? – disse
ela em voz alta.
–
Que fazes aí?
–
A roçar mato para o curral.
Sim
– pensou ele – ali seria o local próprio, pois o mato, próximo do ribeiro,
estava mais viçoso. Todavia deu consigo a pressentir uma armadilha (roçar mato
ao domingo não era tarefa habitual). Detestava ser apanhado naquela situação,
como qualquer láparo que, imprudentemente, vem aliviar-se à clareira, em pleno
dia, afastado da toca. Pelo que reatou a marcha sem mais delongas, dizendo
apenas:
–
Está bem!
–
Eh! Espera, quero falar contigo! – disse ela,
em voz rouca e imperativa.
–
Que queres?
– Quero saber o que se passa contigo! Já não te
vejo há dois meses. Francamente, não sabes o que fizeste?
Diabo!
As suspeitas de Jacinto confirmavam-se. É verdade que haviam namoriscado e que
a posse acontecera naturalmente, na palha do alpendre, tendo por testemunha uma
Lua que espreitava, divertida e cúmplice. Coisa sem grande importância. Aliás,
o ato em si revelara-se caricato, devido aos esforços que ela fizera para
mostrar uma virgindade que não existia. Se havia alguma coisa a discutir teria
que ser com outro, não com ele.
–
Afinal, o que queres de mim? – perguntou Jacinto,
com voz impaciente.
Então,
Deolinda foi-se aproximando, afastando o mato da sua frente com notada
impaciência e Jacinto sentiu-se mais tranquilo ao notar que ela deixara para
trás a enxada com que cortava o mato. Manejada com raiva e de supetão, poderia transformar-se
numa arma temível. Por isso baixou a guarda e também o cão da espingarda. Ela
chegou a arfar e só passado um momento pode dizer:
–
Que sejas responsável!
Erguendo
os olhos em direção ao firmamento, procurando juntar ideias dispersas, Jacinto
suspirou, resignado. Na limpidez do Céu, só um cirro se destacava, vindo de
Sul. Recordou-se da história antiga, da mula do papa, quando este, em tempos
conturbados, pontificava em Avignon, à beira do Ródano. A mula esperara sete
anos para se vingar do palafreneiro que a havia tratado mal. E o coice que lhe
aplicara fora de tal ordem que as águas do rio se agitaram inquietas. Estaria
também ele condenado a esse género de vendeta?
–
Não te forcei a nada! Tu até aceitaste a
situação com alvoroço, como se a desejasses há muito! – respondeu Jacinto.
–
Estás doido? Quero que vás domingo a minha
casa! – disse ela em tom áspero.
Nesse
momento, vindas do cimo do monte, várias perdizes, sete ou oito, asas
desembainhadas, sobrevoaram o mato, rasteiras, fazendo uma zoada caraterística.
Na portela, perto, curvaram para a direita e desapareceram. Algum caçador ou
simples caminhante as teria levantado. Jacinto fez uma careta. Aquelas flibusteiras,
como ele lhes chamava, eram suas conhecidas. Há dias que se entretinham a
negacear consigo, nunca permitindo que ele se aproximasse à distância de tiro.
–
No próximo não pode ser. Conta comigo na quinta-feira.
– respondeu ele, tentando suavizar o momento. Mas é claro que a sua intenção
seria outra. Sabia que o pai de Deolinda, conhecido como o Tio Bisarma, não se
ensaiava nada para varrer tudo à sua volta com a foice de cortar as silvas,
sobretudo se o bagaço lhe esquentasse a cabeça.
–
Falas a sério?
– Sim, conto ir... – respondeu Jacinto, que ao
mesmo tempo levou a mão ao cinto e desprendeu a perdiz do gancho, dizendo:
–
Leva esta perdiz e prepara-a para quinta-feira.
Ajudarei a comê-la.
–
É mesmo verdade?
–
Lá estarei. Agora vou ver se encontro as
perdizes que passaram aqui. Adeus!
De
faces pálidas, cabelos em desalinho, ainda desconfiada, Deolinda viu que ele se
afastava e durante um momento manteve-se atenta, sem desviar os olhos, até Jacinto,
se diluir na vegetação.
*
Dois
dias depois, Jacinto partiu para a conhecida urbe, à beira do Tejo, capital de
um império extinto, também conhecida em tempos longínquos como a grande cloaca,
onde não seria localizado com facilidade.
quarta-feira, 4 de maio de 2016
quinta-feira, 14 de abril de 2016
quarta-feira, 9 de março de 2016
sábado, 5 de março de 2016
Subscrever:
Mensagens (Atom)