Naquela manhã
de maio, João Nabiça decidiu experimentar a potência do seu novo jeep numa
viagem pela serra risonha onde para além do prazer da condução queria saborear a beleza da paisagem. Para além do passeio e do contacto com a natureza, queria, ainda, verificar a resistência da viatura, face à aridez do terreno, numa das diversas
vias florestais de acesso à barragem de Santa Luzia. Tratava-se de um
período do ano em que os montes serranos se revestiam de um colorido matizado
deslumbrante que deleitava o olhar até do mais distraído passante.
A esposa que,
nesse dia, não quisera experimentar a viatura para se furtar à constante censura do
marido, relativa à sua condução, ia sentada a seu lado contemplando o
rendilhado florido que cobria os montes quase no seu auge. Durante todo o
percurso de ida, ambos conviviam com toda aquela beleza natural como se
visitassem a região serrana pela primeira vez. Passaram ali noutras ocasiões,
mas nunca se haviam apercebido de que a paisagem fosse tão arrebatadora, motivo que os forçou a paragens frequentes para o inevitável registo fotográfico.
Depois de um
percurso térreo de grande inclinação em que João Nabiça aproveitou para fazer diversos testes ao veículo que, apesar do elevado grau de dificuldade, correspondeu às suas expetativas, chegaram ao Casal da Lapa. Assim, logo que Nabiça estacionou o carro decidiram percorrer o circuito da pista pedestre, construída
junto à albufeira da barragem de Santa Luzia, exercitando as pernas e sorvendo
o ar puro daquele lugar retemperador.
Logo que o
apetite os despertou para o almoço encaminharam-se para Fajão, uma aldeia de
xisto de grandes tradições que, para além do património histórico de visita
quase obrigatória, lhes reservava uma refeição como há muito não comiam. Depois das entradas de queijo de cabra curado e doce de chila, optaram por uma emanta de cabrito assado, guarnecido com batata alourada e castanha pilada, acompanhado com um bom tinto. No final, após se terem deliciado com uma sobremesa de tigelada na púcara, Nabiça rematou
com um digestivo de aguardente medronheira. Uma iguaria, para auxiliar a
digestão, de sabor ligeiramente adamado e aroma inconfundível, produzida na
região serrana por gente experiente no fabrico artesanal.
Quando
se encaminhavam para a viatura, Nabiça notou que tinha exagerado nas bebidas alcoólicas.
Não estava bêbedo, mas já se sentia um pouco tocado ao ponto de notar pequenas
alterações de coordenação motora. Apesar disso, não comentou o assunto com a
esposa para não a motivar a pegar no volante. Até porque ela também tinha bebido, embora
em menor quantidade. Ao mesmo tempo, ele não tinha muita confiança na sua
condução, especialmente, naquela zona montanhosa onde os precipícios se
sucediam em cada curva da estrada que ao mínimo descuido poderiam originar um despiste com consequências imprevisíveis. Assim, sentou-se ao volante consciente do
seu estado que julgava não ser impeditivo de guiar. De qualquer forma, tinha a
noção de que naquela região o trânsito era bastante reduzido e também não era
habitual ser confrontado com qualquer ação de fiscalização. Então, iniciou a
viagem de regresso à Lousã, em marcha muito cautelosa para tentar minimizar
qualquer imprevisto. No entanto, enquanto subia a serra, para uma altitude superior a mil metros e onde a pressão atmosférica já é notória, foi acometido de forte
sonolência, mas, apesar disso, foi progredindo tentando contrariar o descanso que
organismo lhe pedia.
Entretanto, para
obedecer a uma necessidade fisiológica, foi forçado a interromper a marcha no
momento em que circulava próximo do cimo da catraia do Farropo. Antes de reiniciar a
viagem ficou a saborear a brisa fresca que soprava de norte, tentando, com isso,
espantar a sonolência que o atormentava. Vento era coisa que não faltava por ali em qualquer época do ano. No dorso daquelas
serranias era utilizado como força propulsora para produção de energia.
Enquanto se
movimentava, na berma da estrada, apercebeu-se da existência de uma nascente contígua à via que brotava da fenda de uma rocha em caudal abundante. Como se
o cantarolar da corrente lhe tivesse despertado o apetite, desceu o pequeno
valeiro, encheu uma garrafa que ali encontrou e bebeu em pequenos goles. Minutos
depois repetiu o enchimento e convidou a esposa para que lhe fizesse
companhia, mas como aquela declinou ele esvaziou a garrafa sozinho saboreando a
frescura e a leveza da água em lentos tragos.
Entretanto, o
tempo foi passando e, meia hora mais tarde, notou que a sua disposição
melhorara nitidamente. A sonolência e a perturbação visual tinham desaparecido.
Em função disso, retomou a marcha, aparentemente, consciente para o exercício
da condução.
Porém, quando
se aproximava do entroncamento da Catraia da Martinha, lobrigou, por entre a ramagem dos pinheiros, a presença de uma força policial que se encontrava a
menos de duzentos metros à sua frente. Ao ver os agentes, Nabiça estremeceu e interrompeu
bruscamente a marcha com uma travagem que embora não tivesse sido ruidosa despertou a atenção da fiscalização.
De facto,
estava longe de imaginar que, naquele local, em plena serra, iria ser
surpreendido por uma operação de stop. Precisamente no dia em que tinha
ingerido um copito a mais, uma situação que só muito esporadicamente acontecia. No mesmo instante, sentiu-se invadido por um misto
de emoções contraditórias: se por um lado se recriminava por não ter tido
cuidado suficiente com a bebida, por outro, insurgia-se contra a presença dos agentes de autoridade logo num local que não lhe deixava alternativa de desvio. Pensou em trocar de lugar com a esposa, mas, ao mesmo tempo, descartou a ideia dado que, certamente, os agentes iriam notar. Ao mesmo tempo, equacionava uma forma de se desenvencilhar da
situação em que estava metido, talvez, invertendo o sentido de marcha para se por em fuga. Tinha uma
viatura apropriada para circular por qualquer estrada florestal, onde não
seria facilmente alcançado, mas corria o risco de vir a ser confundido com um
vulgar criminoso, coisa que nem sequer podia imaginar que lhe acontecesse.
Considerava-se uma pessoa responsável e, como tal, a sua única solução, seria
assumir as consequências que pudessem resultar da fiscalização. Nos poucos
segundos que mediaram a sua reflexão tudo isso lhe passou pela mente. Mas, de
repente, lembrou-se de que não tinha averbado qualquer infração no seu cadastro
de condutor e decidiu prosseguir o caminho na expectativa de que isso lhe
servisse de atenuante.
Então, como tanto receara, mal entrou na Estrada Nacional 112, foi logo intercetado pelos agentes
de autoridade. Ao ser questionado se havia ingerido bebidas alcoólicas
respondeu com realismo. Não valia apena mentir até porque o aparelho não se
deixaria, obviamente, iludir pela sua negação. Porém, a sua ansiedade era de tal
modo que, depois de sopro, ficou com os olhos vidrados no aparelho como se
esperasse algo muito decisivo na sua vida de condutor. Mas o resultado surgiria
quase de imediato, com a indicação de 0,35 g/l. Um resultado perfeitamente dentro dos
limites legais para poder exercer a condução. Nabiça nem queria acreditar
naquilo que ouvia da boca do agente, quando aquele lhe deu conta do resultado.
Só depois de
ter sido autorizado a continuar a viagem, comentou com a esposa não só o mau
bocado que passara provocado pelos efeitos do excesso de bebida como, ainda, o susto que
apanhara no ato da fiscalização. Ao mesmo tempo, não se cansava de fazer
conjeturas sobre o resultado do teste e só encontrou uma explicação razoável -
as excelentes propriedades da água que tinha ingerido. De facto, logo que a primeira golada deslizou pela garganta, notou uma reação quase imediata que lhe trouxe a boa disposição, razão
que julgava suficiente para acreditar naquilo que lhe acontecera.
No dia seguinte, João Nabiça mandou fabricar uma placa
metálica com a inscrição seguinte: “Fonte Milagrosa”. Não tardou em arranjar uma
oportunidade para voltar à serra e colocar a placa, junto à fonte, bem à vista
de qualquer transeunte, como se com esse gesto fizesse um agradecimento à
generosidade da natureza pela pureza daquela nascente.
Dois meses mais tarde, por motivos desconhecidos, a placa com a indicação da "Fonte Milagrosa" viria a desaparecer.