sexta-feira, 1 de julho de 2016

TEMPOS DE PENÚRIA







Uma década após o fim da segunda guerra mundial a recuperação económica em Portugal ainda não era notória e algumas franjas da população continuavam mergulhadas em profunda agonia. Apesar de haver muito trabalho os salários eram tão baixos que, mesmo trabalhando de sol a sol, mal davam para a alimentação.
Nessa época, Miguel Estudante tinha onze anos e era o mais velho de nove irmãos, cinco rapazes e quatro raparigas. Frequentava a segunda classe sem perspetiva, nesse ano, de passar para a terceira. Apesar do corpo franzino não indicar a sua idade era desenrascado e vivaço, fruto de uma vivência conturbada própria do meio destruturado em que nascera. Morava com a família, numa pequena barraca, sem as mínimas condições de habitabilidade. O pai, operário fabril especializado, tornara-se um alcoólico inveterado, com total desprezo pelas necessidades familiares. Só trabalhava quando lhe apetecia e em contrapartida não se cansava de engravidar a esposa que pouco mais fazia do que procriar e a um ritmo que quase não lhe deixava tempo para cuidar de quem trazia ao mundo.
Em função disso, todos os filhos do casal passavam por muitas carências dado que naquele tempo o apoio social não levava em conta as necessidades do cidadão e quando a fome apertava cada um desenrascava-se como podia. Os que estavam em idade escolar faltavam muitas vezes às aulas para pedir e roubar, tudo o que fosse comestível, fruta e hortícolas.
Num dia de março, ao cair da noite, o progenitor de Miguel Estudante chegou a casa, mais uma vez, embriagado e quando os vapores do álcool lhe esquentavam a cabeça não era preciso muito para distribuir pancada, tanto pela mulher como pelos filhos. Dessa vez, o desentendimento surgiu a pretexto de uma queixa que o professor lhe fizera relativa ao Miguel e vai daí, deu-lhe uma tareia sem dó nem piedade. A mãe ainda tentou proteger o filho, que no meio da crise era o esteio da família, mas levou pela mesma tabela. Os restantes escaparam ilesos, porque os mais crescidos conseguiram escapar a tempo e os pequenitos esconderam-se num canto do casebre até os ânimos serenarem.
Na manhã seguinte, Miguel Estudante levantou-se com o corpito dorido. As hematomas eram bem visíveis, tanto na cara como no tronco. A fome e as dores não o deixaram pregar olho a noite toda. Nada a que já não estivesse habituado, tanto na escola como em casa, só que agora o castigo fora muito severo.
Como não conseguia dormir saltou bem cedo da tarimba que partilhava com os irmãos. Tinha os olhitos inchados de tanto chorar e o estômago a reivindicar comida. Vestiu roupita aligeirada, pegou na sacola escolar, feita de pedaços de cotim, onde guardava: um par de tamancos para utilizar à entrada da escola, o livro da segunda classe que pertencera a uma antiga aluna sua vizinha, um caderno de linhas, giz e o pequeno quadro de ardosia, onde aprendera a rabiscar as primeiras letras e algarismos e, logo a seguir, partiu.
Ao abandonar a barraca bateu a porta com força numa espécie de represália perante o pai castigador que de imediato ripostou do interior: "Oh malvado! Tu queres brincar comigo, mas logo apanhas mais!" Para não agravar a sua difícil situação, o garoto prosseguiu o caminho que programara, sem olhar para trás nem responder, em direção ao extenso laranjal que matizava de branco, verde e laranja a margem direita do Mondego. Ali, com o cuidado que lhe era peculiar, passou um olhar por toda a área do seu horizonte visual e, quando concluiu que tinha o terreno livre, trepou a uma laranjeira onde colheu uma dezena de laranjas. Assim que desceu diluiu-se na caniça, que crescia frondosa junto ao rio, para não ser notado enquanto enchia a barriguita faminta. Quando se achou satisfeito, guardou as que sobraram na sacola e continuou a caminho da escola.
À semelhança dos irmãos, Miguel Estudante andava sempre descalço e as cicatrizes nos dedos dos pés documentavam muitos tormentos. Mesmo ali, ao cruzar a estrada do campo, deu uma topada numa pedra mais saliente que lhe provocou dores insuportáveis e uma unha de um dedo do pé parcialmente arrancada. Como se a agonia que o acompanhava, desde a véspera, já não fosse suficiente, ainda se viu a contas com mais aquele acidente. Não aguentou, sentou-se no chão de lágrimas nos olhos pressionando o dedo aleijado tentando, tanto quanto possível, estancar a hemorragia e minimizar o sofrimento.
Logo que se recompôs retomou a marcha a coxear, deixando, aqui e acolá, uma mancha de sangue que lhe ia escorrendo do dedo. Ainda tentou utilizar os tamancos, mas logo reconheceu que lhe dificultavam os movimentos e voltou a guarda-los na sacola. Apenas os trazia consigo porque o professor não lhe permitia que entrasse na escola descalço. De repente, lembrou-se dos deveres que não fizera e estacou aterrorizado. Apesar de já estar familiarizado com a disciplina escolar, nunca conseguia prever qual seria a reação do professor, face à falha de um aluno. Especialmente com ele que faltava muitas vezes e era conhecido na escola pelo seu comportamento irreverente. De facto, nunca podia esperar qualquer tolerância ainda que justificada. Sempre que prevaricava a resposta do docente não se fazia esperar e quando tocava a bater não era nada meigo. Então, depois de refletir, decidiu faltar às aulas e no dia seguinte justificar a falta com uma desculpa qualquer, pelo menos, se não fosse atendido, adiava a punição.
Assim, Miguel Estudante esqueceu rapidamente a escola e caminhou em direção ao rio. Logo que ali chegou, pegou numa cana de pesca que guardara na caniça, procurou isco na ínsua e entregou-se à luta em busca da refeição. Não era só a falta de vocação para as letras que o levava a fugir da escola, as carências alimentares também pesavam e de que maneira.
A pesca para ele não era um divertimento, mas uma forma de arranjar alguma coisa para enganar o estomago. Por isso, ali, esquecia facilmente o mau vício do pai, os deveres que trazia para fazer em casa e os castigos que professor lhe aplicava. Só a fome teimava em o acompanhar para qualquer sítio que fosse.
Por capricho da natureza, a pescaria nesse dia iria correr bem. Os barbos e as bogas, naquela fase do ano, próximo da desova, pegavam no isco com relativa facilidade e ele sabia tirar partido disso. Assim, acendeu uma fogueira no areal perto da água e grelhou alguns exemplares que mesmo sem sal lhe souberam ao melhor pitéu.
Dias mais tarde, durante as aulas, em sequência de uma pergunta a que não soube responder, o professor sentenciou-o, mais uma vez, a dez reguadas em cada mão. Foi o transbordar do copo, já não aguentava tanta tareia, nem sequer podia ver o ponteiro de marmeleiro que muitas vezes lhe vergastava as costas e muito menos a palmatória que, era feita em madeira de carvalho francês e, magoava que se fartava. Tinha que fazer alguma coisa para deixar, bem clara a sua revolta, de apanhar pancada por tudo e por nada, ao ponto de ser o bombo da classe.
Em função disso, logo que o castigo lhe foi aplicado, no seu habitual estilo rebelde, aproximou-se da carteira onde se sentava, pegou no tinteiro metálico de caneta de aparo, ali instalado, e atirou-o, com toda a força que pode imprimir, à cabeça do docente que, ao ser atingido, ficou estonteado pela dor e pela surpresa. Logo a seguir, antes que aquele lhe pudesse deitar a mão desatou a correr e saiu porta fora. Nessa noite não dormiu em casa, acomodou-se numa barraca abandonada junto ao rio que era o seu refúgio habitual quando desconfiava que vinho do pai se iria entornar para o seu lado.
Entretanto, em sequência da queixa apresentada pelo professor à direção escolar, relativa à agressão de que fora vítima, Miguel Estudante foi enviado para o colégio da tutoria de menores, onde permaneceu três meses, em regime fechado e sob regras rígidas de disciplina. Ali, perdeu o privilégio de fazer o que lhe apetecia, mas em contra partida deixou de passar fome, calçou os primeiros sapatos e vestiu uma farda devidamente limpa e engomada. Finalmente, começava a perceber que não podia fugir à disciplina que lhe era imposta, mas não iria ser fácil controlar e seu temperamento rebelde.
Logo que terminou o castigo regressou às origens e à vida libertina que levava até então que se dividia entre pedir esmola de porta em porta e roubar. Tudo em busca de alimentos. Até parecia de que nada lhe valera aqueles meses de corretivo, mas a realidade era bem mais cruel, atendendo a que as necessidades falavam mais alto. Como não podia deixar de ser, ao fim de pouco tempo, voltaria a ter complicações.
Certa madrugada, a fome apertava e a barraca fervilhava em constante desassossego. Então, Miguel Estudante pegou num cesto de verga e partiu em busca de alguma coisa com que pudesse alimentar os irmãos. Ao chegar junto à Quinta dos Muros não viu ninguém por perto e tratou logo de engendrar uma forma de esventrar a rede de vedação para ir em busca de algum produto comestível. Já no interior, começou por arrancar batatas e terminou a apanhar uvas. Mal encheu o recipiente apressou-se a abandonar o local, receando que surgisse algo com que não contava. Até ali tudo correu bem, no entanto, quando se esgueirava pelo buraco que abrira foi surpreendido pelo proprietário que lhe barrou a passagem. Até parecia que já o esperava como cão espera o coelho à porta da toca. O garoto bem lutou para se libertar, mas aquele agarrou-o pelo cabelo com tal determinação que não lhe deu qualquer possibilidade de fuga. Então, não satisfeito com os acoites que lhe aplicara, conduziu-o até ao casebre onde Miguel morava para exigir uma indemnização ao pai, de prejuízos e atrevimento, de tal modo avultada que impossibilitou qualquer pagamento. Tudo isso sem levar em conta que se tratava de uma família indigente sem condições económicas para alimentar tantas bocas. Como não foi ressarcido correu a entrega-lo à polícia alegando que não lhe podia perdoar dado que estava cansado das visitas dos larápios.
Em sequência desse pequeno golpe, Miguel Estudante foi reencaminhado para a tutoria por mais algum tempo. Sendo posteriormente enviado para um colégio de correção na capital, onde permaneceu até atingir os dezoito anos de idade. Ali, para além da profissão de encadernador, apreendeu a ser homem.
 

domingo, 5 de junho de 2016

INQUILINO QUEZILENTO


Longe iam os tempos em que o velho Virgílio se dedicara à pesca do bacalhau nos mares gelados da Noruega e Terra Nova. Na época, passava seis meses a fio na imensidão atlântica enfrentando o perigo constante e o trabalho árduo, quase sem descanso. Com o passar lento dos dias, acabara por se habituar ao transtorno próprio da vida no mar: longe da família, sujeito aos humores da natureza, laboração em equipa, convívio limitado à tripulação do navio, solidão e contratempos de vária ordem. Agora, a saúde débil e os seus sessenta e quatro anos de idade já não lhe permitiam tomar parte nessa aventura. Assim, sem outros meios de subsistência, ia sobrevivendo com o pouco que retirava da faina costeira, quando a saúde lho permitia.
O dinheiro que angariara na pesca longínqua investira-o na compra de uma vivenda nas imediações da Figueira da foz, num local aprazível, perto do mar, constituída por duas habitações com acessos independentes. Situação que lhe permitia ocupar o rés-do-chão e destinar o primeiro andar para rendimento. Com essa ideia em mente, esperava alugar aquela parte da casa a gente de boas contas, ordeira e respeitadora, para obter uma ajuda para as despesas quotidianas. Uma espécie de complemento do ordenado para os dias de incerteza com que era confrontado. Mas nem tudo viria a correu como previra e o investimento de muitos anos de trabalho árduo acabaria por se transformar no maior pesadelo da sua vida.
Tudo começara no momento em que o velho Virgílio arrendara o primeiro andar ao Macário. Um forasteiro que, quando ali chegou, alegou integrar uma equipa de monitores num curso de formação profissional, uma forma de aprendizagem para desempregados que à época movimentava milhões. Apesar de se tratar de um desconhecido, sem referências pessoais, Virgílio não lhe exigira fiador como seria normal esperar. Entendera assim porque, era um homem de sólida formação moral que, sempre lidara com gente de  boa índole e em função disso, confiara em tudo o que o forasteiro lhe dissera. Depois do primeiro contacto com o Macário ficou com a ideia de que se tratava de um homem culto e educado. Apenas um senão, que, ainda assim, não fora impeditivo ao contrato de arrendamento, aquele tinha conversa para dar e vender, ao estilo de um politico à espera de poleiro. Contudo, mais tarde, viria a revelar-se uma pessoa velhaca e quezilenta, que criava guerras por tudo e por nada. 
Nos dois primeiros anos, o relacionamento entre ambos, apenas, se limitou ao indispensável entre senhorio e inquilino, mas pautou-se por um tratamento civilizado nunca imaginando o que o futuro lhes reservava. Assim, a partir do momento em que Macário comprou, também, a sua própria moradia tudo se alterou para pior. A casa arrendada ficou vazia e aquele deixou de pagar pontualmente a renda, como o fizera até aí, sem nunca se justificar. Pagava um mês e ficava a dever dois e a dívida foi-se acumulando, não se vislumbrando no horizonte forma do inquilino pagar as rendas vencidas. Em função disso, antes de recorrer à justiça, o velho Virgílio tentou, então, entender-se com aquele visando reaver o andar de que era proprietário, mas Macário, aproveitando as leis de arrendamento então vigentes, exigiu uma indemnização de tal modo avultada que impediu, à partida, qualquer tipo de acordo entre ambos.
A partir daí, o inquilino resolveu infernizar a vida ao senhorio recorrendo a métodos e picardias impensáveis. Começou por ir ao apartamento, a horas tardias, arrastar móveis e dar pancadas no soalho, com o único objetivo de lhe perturbar o descanso. Confusão que ia repetindo, quase diariamente, dando origem a discussões e ameaças de todo o tipo que frequentemente culminavam com a intervenção da polícia, ainda assim, sem qualquer resultado visível.
Mais tarde, para evitar confrontos físicos que se anunciavam a todo o momento, o inquilino viria a mudar de tática com resultados ainda mais devastadores. Com o apoio de um técnico de eletrónica instalou um aparelho sonoro com a finalidade de reproduzir o canto da rola. Uma cantoria repetitiva e perturbadora que se ouvia dia e noite. Ao fim de pouco tempo e em consequência de todas essas tropelias, o velho Virgílio não aguentou, acabando no hospital a contas com um esgotamento. A estrutura mental de um homem que, ao longo da vida, resistira, incólume, a impensáveis agruras e provações de toda a ordem, acabaria por ruir, de um momento para o outro, face à crueldade daquele malfeitor.
Logo que Virgílio sentiu algumas melhoras regressou a casa parcialmente recuperado. No entanto, foi aconselhado, pelo médico, a afastar-se o mais rápido possível do centro do conflito para, não só, evitar uma recaída, como ainda, preservar a sanidade da esposa que também dava indícios de desgaste. Virgílio fora sempre um homem pacífico e respeitador, mas cada vez que era confrontado pelo mau carácter do Macário notava o seu habitual temperamento ordeiro prestes a desmoronar-se. Tal só ainda não havia acontecido devido à pronta intervenção da esposa, que não olhava a meios, para o impedir de cometer uma loucura.
Depois de ponderar a situação, não pensou duas vezes, pegou no indispensável e foi acomodar-se na barraca que possuía perto da praia e que muitas vezes servira de apoio à sua atividade pesqueira. Embora tivesse condições bastante precárias, daria para aguentar o período de verão. Seria preferível fazer esse sacrifício temporário do que continuar a viver no inferno que o inquilino lhe arranjara. Pelo menos até decisão do processo que, entretanto, remetera ao tribunal e do qual esperava uma solução.   
Ao fim de algumas semanas de convalescença, Virgílio continuava a não ter condições para voltar ao trabalho. Estava longe da fonte do seu calvário, mas parecia que o seu drama cada dia se adensava mais. Por mais que a esposa suavizasse os acontecimentos e o aconselhasse a não se enervar a única ideia que não lhe saía da cabeça era a de acertar contas com o inquilino.
Um dia, cansado da sua inatividade e aproveitando a tarde que convidava a um passeio à beira mar, resolveu meter-se a caminho para tentar fugir ao abismo das suas cogitações que não lhe davam sossego nem um momento. Por mais que tentasse, não conseguia aceitar as regras legais que, na prática, pareciam favorecer mais os prevaricadores e desonestos do que as pessoas que cumpriam com os seus deveres de cidadania.
Ao fim de meia hora em que percorreu, à toa, locais por onde não passava há muito e deu por si junto à tasca do ti Luís. Depois de alguma hesitação, resolveu entrar e beber um tinto na esperança de que o vinho lhe desse alguma tranquilidade de espírito. Logo a seguir, encaminhou-se para o paredão que separava o leito do rio Mondego da zona de praia onde vários pescadores, de pesca à linha, iam matando o tempo à espera de um peixe que tardava em picar. Ali, escolheu um local desocupado, sentou-se numa pedra voltado para a zona antiga da cidade, acendeu um cigarro e ficou a contemplar o movimento, constante, das embarcações que entravam e saíam do porto da Figueira da Foz. Perante aquele cenário que lhe era familiar, deteve-se a saborear a aura amena que soprava de sul. Em poucos segundos, perdeu-se num emaranhado de pensamentos nostálgicos do tempo em que também ele regressava ao porto, ansioso por abraçar a esposa e com o navio a abarrotar de peixe que era garantia de algum dinheiro na carteira. Como era feliz nessa época! Era mais novo, tinha saúde de ferro e as preocupações não lhe roubavam o sono.
A brisa de norte que, a meio de cada tarde, costumava varrer toda a orla costeira e antecipar a debandada dos banhistas que, naquela época do ano, enchiam as praias da região, não se fez sentir nesse dia. Em função disso, o tempo foi passando ligeiro e quando o velho Virgílio deu por si já o crepúsculo caía quente sobre a maré baixa, inundando toda a área ribeirinha com um cheiro a maresia e a esgotos. Com o entardecer, chegavam a terra firme nuvens densas de mosquitos, famintos, que não se cansavam de espetar o ferrão venenoso em qualquer transeunte. Embora não se sentisse importunado por aquela praga invasora, acendeu mais um cigarro, levantou-se e ao dar os primeiros passos quase esbarrou com o Albino, um antigo companheiro da faina que já não via há muito tempo. Embora aquele fosse bastante mais novo do que ele, estava a contas com o desemprego de longa duração. Depois da decisão política de abate de grande parte da frota pesqueira, nunca mais arranjara trabalho na pesca longínqua, ia sobrevivendo de pequenos biscates sem qualquer regularidade nem vínculo laboral.
Mal os dois homens se encararam, cumprimentaram-se efusivamente, trocaram algumas palavras e partiram, a caminho da tasca do ti Luís, a pretexto de um brinde ao reencontro.
Enquanto o tinto, de origem alentejana, lhes ia escorregando pela garganta, Albino foi-se inteirando da situação do velho Virgílio e ofereceu-se de imediato para o ajudar a meter Macário na devida ordem. Até porque era uma pessoa com quem ele nunca simpatizara. Assim, não esperaram por outra oportunidade. Logo que terminaram a bebida, partiram ao encontro daquela criatura que não parava de infernizar a vida ao pobre Virgílio.
Nessa noite, Macário dava entrada no hospital com vários traumatismos. Ao ser questionado pela polícia sobre o que lhe acontecera, esclareceu, simplesmente, que fora vítima de uma queda.
Uma semana mais tarde, o velho Virgílio foi surpreendido por uma carta, manuscrita e assinada pelo Macário, pondo fim ao contrato de arrendamento e fazendo a entrega da chave da casa. No final, em letra igualmente legível, um pedido de desculpas sobre as maroteiras que lhe fizera.




sexta-feira, 6 de maio de 2016

A DEFORRA DA NATUREZA



O Outono estava já a meio mas a temperatura mantinha-se alta, apoiada num Céu sem nuvens, onde o Sol se mostrava inclemente, pouco disposto a oferecer tréguas. O silêncio era total; nem ramos agitados pelo vento ou sequer uma ligeira brisa que aliviasse a canícula. Com exceção da torga magoriça, de floração serôdia e prolongada, o mato em redor exibia um tom áspero e chocalhante, implorando por chuva.
Cansado, com as forças a minguarem-se-lhe, transpirando abundantemente, Jacinto enveredou por um carreiro de cabras que serpenteava as courelas do Vale da Carreira, para regressar mais rapidamente à sua aldeia que distava dali cerca de dois quilómetros. Ao ombro transportava uma arma de um só cano, com o cão erguido, em posição de fogo. Pendurada no cinturão, uma perdiz balanceava como pêndulo em relógio. À sua frente, uma cadela pouco interessada, igualmente despojada de energias, língua de fora, farejava ao desfastio como se entendesse que a jornada estava concluída. A Tita, perdigueira de raça épagneul-breton, olhava, receosa, para os tojos que via à sua volta, cujos espinhos, quando se aventurava por entre o mato, lhe picavam a pele, fazendo-a ganir, dorida. Que delícia, – pensava ela – regressar à casa do dono para se refastelar no sofá acolhedor, onde a mãe de Jacinto, atenta e prestável, como pajem em ambiente real, era pródiga em mimos.
De súbito, uma voz feminina fez-se ouvir pelo valeiro:
    Jacinto! Jacinto! 
Como nada visse ao longo do caminho, olhou em redor até que se deteve numa figura de mulher que se desenhava num plano inferior, entre o carreiro e o riacho.
    Ah!... És tu, Deolinda?
    É verdade! Quem esperavas que fosse? – disse ela em voz alta.
    Que fazes aí?
    A roçar mato para o curral.
Sim – pensou ele – ali seria o local próprio, pois o mato, próximo do ribeiro, estava mais viçoso. Todavia deu consigo a pressentir uma armadilha (roçar mato ao domingo não era tarefa habitual). Detestava ser apanhado naquela situação, como qualquer láparo que, imprudentemente, vem aliviar-se à clareira, em pleno dia, afastado da toca. Pelo que reatou a marcha sem mais delongas, dizendo apenas:
    Está bem!
    Eh! Espera, quero falar contigo! – disse ela, em voz rouca e imperativa.
    Que queres?
  Quero saber o que se passa contigo! Já não te vejo há dois meses. Francamente, não sabes o que fizeste?
Diabo! As suspeitas de Jacinto confirmavam-se. É verdade que haviam namoriscado e que a posse acontecera naturalmente, na palha do alpendre, tendo por testemunha uma Lua que espreitava, divertida e cúmplice. Coisa sem grande importância. Aliás, o ato em si revelara-se caricato, devido aos esforços que ela fizera para mostrar uma virgindade que não existia. Se havia alguma coisa a discutir teria que ser com outro, não com ele.
    Afinal, o que queres de mim? – perguntou Jacinto, com voz impaciente.
Então, Deolinda foi-se aproximando, afastando o mato da sua frente com notada impaciência e Jacinto sentiu-se mais tranquilo ao notar que ela deixara para trás a enxada com que cortava o mato. Manejada com raiva e de supetão, poderia transformar-se numa arma temível. Por isso baixou a guarda e também o cão da espingarda. Ela chegou a arfar e só passado um momento pode dizer:
    Que sejas responsável!
Erguendo os olhos em direção ao firmamento, procurando juntar ideias dispersas, Jacinto suspirou, resignado. Na limpidez do Céu, só um cirro se destacava, vindo de Sul. Recordou-se da história antiga, da mula do papa, quando este, em tempos conturbados, pontificava em Avignon, à beira do Ródano. A mula esperara sete anos para se vingar do palafreneiro que a havia tratado mal. E o coice que lhe aplicara fora de tal ordem que as águas do rio se agitaram inquietas. Estaria também ele condenado a esse género de vendeta?
    Não te forcei a nada! Tu até aceitaste a situação com alvoroço, como se a desejasses há muito! – respondeu Jacinto.
    Estás doido? Quero que vás domingo a minha casa! – disse ela em tom áspero.
Nesse momento, vindas do cimo do monte, várias perdizes, sete ou oito, asas desembainhadas, sobrevoaram o mato, rasteiras, fazendo uma zoada caraterística. Na portela, perto, curvaram para a direita e desapareceram. Algum caçador ou simples caminhante as teria levantado. Jacinto fez uma careta. Aquelas flibusteiras, como ele lhes chamava, eram suas conhecidas. Há dias que se entretinham a negacear consigo, nunca permitindo que ele se aproximasse à distância de tiro.
    No próximo não pode ser. Conta comigo na quinta-feira. – respondeu ele, tentando suavizar o momento. Mas é claro que a sua intenção seria outra. Sabia que o pai de Deolinda, conhecido como o Tio Bisarma, não se ensaiava nada para varrer tudo à sua volta com a foice de cortar as silvas, sobretudo se o bagaço lhe esquentasse a cabeça.
    Falas a sério?
  Sim, conto ir... – respondeu Jacinto, que ao mesmo tempo levou a mão ao cinto e desprendeu a perdiz do gancho, dizendo:
    Leva esta perdiz e prepara-a para quinta-feira. Ajudarei a comê-la.
    É mesmo verdade?
    Lá estarei. Agora vou ver se encontro as perdizes que passaram aqui. Adeus!
De faces pálidas, cabelos em desalinho, ainda desconfiada, Deolinda viu que ele se afastava e durante um momento manteve-se atenta, sem desviar os olhos, até Jacinto, se diluir na vegetação.
*
Dois dias depois, Jacinto partiu para a conhecida urbe, à beira do Tejo, capital de um império extinto, também conhecida em tempos longínquos como a grande cloaca, onde não seria localizado com facilidade.