Uma década após o fim da segunda guerra mundial a
recuperação económica em Portugal ainda não era notória e algumas franjas da
população continuavam mergulhadas em profunda agonia. Apesar de haver muito
trabalho os salários eram tão baixos que, mesmo trabalhando de sol a sol, mal
davam para a alimentação.
Nessa época, Miguel Estudante tinha onze anos e era o
mais velho de nove irmãos, cinco rapazes e quatro raparigas. Frequentava a
segunda classe sem perspetiva, nesse ano, de passar para a terceira. Apesar do
corpo franzino não indicar a sua idade era desenrascado e vivaço, fruto de uma
vivência conturbada própria do meio destruturado em que nascera. Morava com a
família, numa pequena barraca, sem as mínimas condições de
habitabilidade. O pai, operário fabril especializado, tornara-se um alcoólico
inveterado, com total desprezo pelas necessidades familiares. Só trabalhava
quando lhe apetecia e em contrapartida não se cansava de engravidar a esposa
que pouco mais fazia do que procriar e a um ritmo que quase não lhe deixava
tempo para cuidar de quem trazia ao mundo.
Em função disso, todos os filhos do casal passavam por
muitas carências dado que naquele tempo o apoio social não levava em conta as necessidades do cidadão e quando a fome apertava cada um desenrascava-se como podia. Os que estavam em
idade escolar faltavam muitas vezes às aulas para pedir e roubar, tudo o que
fosse comestível, fruta e hortícolas.
Num dia de março, ao cair da noite, o progenitor de
Miguel Estudante chegou a casa, mais uma vez, embriagado e quando os vapores do
álcool lhe esquentavam a cabeça não era preciso muito para distribuir pancada,
tanto pela mulher como pelos filhos. Dessa vez, o desentendimento surgiu a
pretexto de uma queixa que o professor lhe fizera relativa ao Miguel e vai daí,
deu-lhe uma tareia sem dó nem piedade. A mãe ainda tentou proteger o filho, que
no meio da crise era o esteio da família, mas levou pela mesma tabela. Os
restantes escaparam ilesos, porque os mais crescidos conseguiram escapar a tempo
e os pequenitos esconderam-se num canto do casebre até os ânimos serenarem.
Na manhã seguinte, Miguel Estudante levantou-se com o
corpito dorido. As hematomas eram bem visíveis, tanto na cara como no tronco. A fome e as
dores não o deixaram pregar olho a noite toda. Nada a que já não estivesse
habituado, tanto na escola como em casa, só que agora o castigo fora muito
severo.
Como não conseguia dormir saltou bem cedo da tarimba que partilhava com os irmãos. Tinha os olhitos inchados de tanto chorar e o
estômago a reivindicar comida. Vestiu roupita aligeirada, pegou na sacola
escolar, feita de pedaços de cotim, onde guardava: um par de tamancos para
utilizar à entrada da escola, o livro da segunda classe que pertencera a uma antiga aluna sua vizinha, um caderno de linhas, giz e o pequeno quadro de ardosia, onde
aprendera a rabiscar as primeiras letras e algarismos e, logo a seguir, partiu.
Ao abandonar a barraca bateu a porta com força numa espécie de represália perante o pai castigador que de imediato ripostou do
interior: "Oh malvado! Tu queres brincar comigo, mas logo apanhas mais!" Para
não agravar a sua difícil situação, o garoto prosseguiu o caminho que
programara, sem olhar para trás nem responder, em direção ao extenso laranjal
que matizava de branco, verde e laranja a margem direita do Mondego. Ali, com o cuidado
que lhe era peculiar, passou um olhar por toda a área do seu horizonte visual e,
quando concluiu que tinha o terreno livre, trepou a uma laranjeira onde colheu
uma dezena de laranjas. Assim que desceu diluiu-se na caniça, que crescia
frondosa junto ao rio, para não ser notado enquanto enchia a barriguita
faminta. Quando se achou satisfeito, guardou as que sobraram na sacola e
continuou a caminho da escola.
À semelhança dos irmãos, Miguel Estudante andava
sempre descalço e as cicatrizes nos dedos dos pés documentavam muitos
tormentos. Mesmo ali, ao cruzar a estrada do campo, deu uma topada numa pedra
mais saliente que lhe provocou dores insuportáveis e uma unha de um dedo do pé
parcialmente arrancada. Como se a agonia que o acompanhava, desde a véspera, já
não fosse suficiente, ainda se viu a contas com mais aquele acidente. Não
aguentou, sentou-se no chão de lágrimas nos olhos pressionando o dedo aleijado
tentando, tanto quanto possível, estancar a hemorragia e minimizar o
sofrimento.
Logo que se recompôs retomou a marcha a coxear,
deixando, aqui e acolá, uma mancha de sangue que lhe ia escorrendo do dedo. Ainda
tentou utilizar os tamancos, mas logo reconheceu que lhe dificultavam os
movimentos e voltou a guarda-los na sacola. Apenas os trazia consigo porque o
professor não lhe permitia que entrasse na escola descalço. De repente,
lembrou-se dos deveres que não fizera e estacou aterrorizado. Apesar de já
estar familiarizado com a disciplina escolar, nunca conseguia prever qual
seria a reação do professor, face à falha de um aluno. Especialmente com ele que faltava muitas vezes e era conhecido na escola pelo seu comportamento
irreverente. De facto, nunca podia esperar qualquer tolerância ainda que
justificada. Sempre que prevaricava a resposta do docente não se fazia esperar
e quando tocava a bater não era nada meigo. Então, depois de refletir, decidiu
faltar às aulas e no dia seguinte justificar a falta com uma desculpa qualquer,
pelo menos, se não fosse atendido, adiava a punição.
Assim, Miguel Estudante esqueceu rapidamente a escola
e caminhou em direção ao rio. Logo que ali chegou, pegou numa cana de pesca que
guardara na caniça, procurou isco na ínsua e entregou-se à luta em busca da
refeição. Não era só a falta de vocação para as letras que o levava a fugir da
escola, as carências alimentares também pesavam e de que maneira.
A pesca para ele não era um divertimento, mas uma
forma de arranjar alguma coisa para enganar o estomago. Por isso, ali, esquecia
facilmente o mau vício do pai, os deveres que trazia para fazer em casa e os
castigos que professor lhe aplicava. Só a fome teimava em o acompanhar para
qualquer sítio que fosse.
Por capricho da natureza, a pescaria nesse dia iria
correr bem. Os barbos e as bogas, naquela fase do ano, próximo da desova,
pegavam no isco com relativa facilidade e ele sabia tirar partido disso. Assim,
acendeu uma fogueira no areal perto da água e grelhou alguns exemplares que
mesmo sem sal lhe souberam ao melhor pitéu.
Dias mais tarde, durante as aulas, em sequência de uma
pergunta a que não soube responder, o professor sentenciou-o, mais uma vez, a
dez reguadas em cada mão. Foi o transbordar do copo, já não aguentava tanta
tareia, nem sequer podia ver o ponteiro de marmeleiro que muitas vezes lhe
vergastava as costas e muito menos a palmatória que, era feita em madeira de
carvalho francês e, magoava que se fartava. Tinha que fazer alguma coisa para
deixar, bem clara a sua revolta, de apanhar pancada por tudo e por nada, ao
ponto de ser o bombo da classe.
Em função disso, logo que o castigo lhe foi aplicado,
no seu habitual estilo rebelde, aproximou-se da carteira onde se sentava, pegou
no tinteiro metálico de caneta de aparo, ali instalado, e atirou-o, com toda a
força que pode imprimir, à cabeça do docente que, ao ser atingido, ficou
estonteado pela dor e pela surpresa. Logo a seguir, antes que aquele lhe
pudesse deitar a mão desatou a correr e saiu porta fora. Nessa noite não dormiu
em casa, acomodou-se numa barraca abandonada junto ao rio que era o seu refúgio habitual quando desconfiava que vinho do pai se iria entornar para o seu lado.
Entretanto, em sequência da queixa apresentada pelo
professor à direção escolar, relativa à agressão de que fora vítima, Miguel
Estudante foi enviado para o colégio da tutoria de menores, onde permaneceu
três meses, em regime fechado e sob regras rígidas de disciplina. Ali, perdeu o
privilégio de fazer o que lhe apetecia, mas em contra partida deixou de passar fome, calçou os
primeiros sapatos e vestiu uma farda devidamente limpa e engomada. Finalmente,
começava a perceber que não podia fugir à disciplina que lhe era imposta, mas
não iria ser fácil controlar e seu temperamento rebelde.
Logo que terminou o castigo regressou às origens e à
vida libertina que levava até então que se dividia entre pedir esmola de porta
em porta e roubar. Tudo em busca de alimentos. Até parecia de que nada lhe
valera aqueles meses de corretivo, mas a realidade era bem mais cruel,
atendendo a que as necessidades falavam mais alto. Como não podia deixar de
ser, ao fim de pouco tempo, voltaria a ter complicações.
Certa madrugada, a fome apertava e a barraca
fervilhava em constante desassossego. Então, Miguel Estudante pegou num cesto
de verga e partiu em busca de alguma coisa com que pudesse alimentar os irmãos.
Ao chegar junto à Quinta dos Muros não viu ninguém por perto e tratou logo de
engendrar uma forma de esventrar a rede de vedação para ir em busca de algum
produto comestível. Já no interior, começou por arrancar batatas e terminou a
apanhar uvas. Mal encheu o recipiente apressou-se a abandonar o local, receando
que surgisse algo com que não contava. Até ali tudo correu bem, no entanto,
quando se esgueirava pelo buraco que abrira foi surpreendido pelo proprietário
que lhe barrou a passagem. Até parecia que já o esperava como cão espera o
coelho à porta da toca. O garoto bem lutou para se libertar, mas aquele
agarrou-o pelo cabelo com tal determinação que não lhe deu qualquer
possibilidade de fuga. Então, não satisfeito com os acoites que lhe aplicara,
conduziu-o até ao casebre onde Miguel morava para exigir uma indemnização ao
pai, de prejuízos e atrevimento, de tal modo avultada que impossibilitou
qualquer pagamento. Tudo isso sem levar em conta que se tratava de uma família
indigente sem condições económicas para alimentar tantas bocas. Como não foi
ressarcido correu a entrega-lo à polícia alegando que não lhe podia perdoar dado que estava cansado das visitas dos larápios.
Em sequência
desse pequeno golpe, Miguel Estudante foi reencaminhado para a tutoria por mais
algum tempo. Sendo posteriormente enviado para um colégio de correção na
capital, onde permaneceu até atingir os dezoito anos de idade. Ali, para além
da profissão de encadernador, apreendeu a ser homem.