Quando me afoitei na torrente fluvial, Entraste em pânico e acudiste, Com a dádiva da amizade de animal, Que entre os homens já não existe.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
domingo, 5 de junho de 2016
INQUILINO QUEZILENTO
Longe iam os
tempos em que o velho Virgílio se dedicara à pesca do bacalhau nos mares
gelados da Noruega e Terra Nova. Na época, passava seis meses a fio na
imensidão atlântica enfrentando o perigo constante e o trabalho árduo, quase
sem descanso. Com o passar lento dos dias, acabara por se habituar ao transtorno próprio da vida no mar: longe da família, sujeito aos humores da natureza, laboração em equipa, convívio limitado à tripulação do navio, solidão e contratempos de vária ordem. Agora, a saúde débil e os seus
sessenta e quatro anos de idade já não lhe permitiam tomar parte nessa
aventura. Assim, sem outros meios de subsistência, ia sobrevivendo com o pouco
que retirava da faina costeira, quando a saúde lho permitia.
O dinheiro que
angariara na pesca longínqua investira-o na compra de uma vivenda nas
imediações da Figueira da foz, num local aprazível, perto do mar, constituída
por duas habitações com acessos independentes. Situação que lhe permitia ocupar
o rés-do-chão e destinar o primeiro andar para rendimento. Com essa ideia em
mente, esperava alugar aquela parte da casa a gente de boas contas, ordeira e
respeitadora, para obter uma ajuda para as despesas quotidianas. Uma espécie de
complemento do ordenado para os dias de incerteza com que era confrontado. Mas
nem tudo viria a correu como previra e o investimento de muitos anos de trabalho árduo
acabaria por se transformar no maior pesadelo da sua vida.
Tudo começara no
momento em que o velho Virgílio arrendara o primeiro andar ao Macário. Um forasteiro que, quando ali chegou, alegou integrar uma equipa de monitores num curso de formação profissional, uma forma de aprendizagem para desempregados que à época movimentava milhões. Apesar de se
tratar de um desconhecido, sem referências pessoais, Virgílio não lhe exigira fiador como seria normal esperar. Entendera assim porque, era um homem de sólida
formação moral que, sempre lidara com gente de boa índole e em função disso,
confiara em tudo o que o forasteiro lhe dissera. Depois do primeiro contacto com o Macário ficou com a ideia de que se
tratava de um homem culto e educado. Apenas um senão, que, ainda assim, não fora impeditivo ao contrato de arrendamento, aquele tinha conversa para dar e
vender, ao estilo de um politico à espera de poleiro. Contudo, mais tarde, viria a
revelar-se uma pessoa velhaca e quezilenta, que criava guerras por tudo e por
nada.
Nos dois
primeiros anos, o relacionamento entre ambos, apenas, se limitou ao indispensável entre
senhorio e inquilino, mas pautou-se por um tratamento
civilizado nunca imaginando o que o futuro lhes reservava. Assim, a partir do momento em que Macário comprou, também, a sua
própria moradia tudo se alterou para pior. A casa arrendada ficou vazia e aquele deixou de pagar
pontualmente a renda, como o fizera até aí, sem nunca se justificar. Pagava um
mês e ficava a dever dois e a dívida foi-se acumulando, não se vislumbrando no
horizonte forma do inquilino pagar as rendas vencidas. Em função disso, antes
de recorrer à justiça, o velho Virgílio tentou, então, entender-se com aquele
visando reaver o andar de que era proprietário, mas Macário, aproveitando as leis de arrendamento então vigentes, exigiu uma
indemnização de tal modo avultada que impediu, à partida, qualquer tipo de
acordo entre ambos.
A partir daí, o
inquilino resolveu infernizar a vida ao senhorio recorrendo a métodos e
picardias impensáveis. Começou por ir ao apartamento, a horas
tardias, arrastar móveis e dar pancadas no soalho, com o único objetivo de lhe
perturbar o descanso. Confusão que ia repetindo, quase diariamente, dando
origem a discussões e ameaças de todo o tipo que frequentemente culminavam com
a intervenção da polícia, ainda assim, sem qualquer resultado visível.
Mais tarde, para evitar confrontos físicos que se anunciavam a todo o momento, o inquilino viria a mudar de tática com resultados ainda mais devastadores. Com o apoio de
um técnico de eletrónica instalou um aparelho sonoro com a finalidade de
reproduzir o canto da rola. Uma cantoria repetitiva e perturbadora que se ouvia
dia e noite. Ao fim de pouco tempo e em consequência de todas essas tropelias,
o velho Virgílio não aguentou, acabando no hospital a contas com um esgotamento.
A estrutura mental de um homem que, ao longo da vida, resistira, incólume, a
impensáveis agruras e provações de toda a ordem, acabaria por ruir, de um
momento para o outro, face à crueldade daquele malfeitor.
Logo que
Virgílio sentiu algumas melhoras regressou a casa parcialmente recuperado. No
entanto, foi aconselhado, pelo médico, a afastar-se o mais rápido possível do
centro do conflito para, não só, evitar uma recaída, como ainda, preservar a
sanidade da esposa que também dava indícios de desgaste. Virgílio fora sempre
um homem pacífico e respeitador, mas cada vez que era confrontado pelo mau
carácter do Macário notava o seu habitual temperamento ordeiro prestes a
desmoronar-se. Tal só ainda não havia acontecido devido à pronta intervenção da
esposa, que não olhava a meios, para o impedir de cometer uma loucura.
Depois de
ponderar a situação, não pensou duas vezes, pegou no indispensável e foi
acomodar-se na barraca que possuía perto da praia e que muitas vezes servira de
apoio à sua atividade pesqueira. Embora tivesse condições bastante precárias, daria para
aguentar o período de verão. Seria preferível fazer esse sacrifício temporário
do que continuar a viver no inferno que o inquilino lhe arranjara. Pelo menos
até decisão do processo que, entretanto, remetera ao tribunal e do qual esperava uma solução.
Ao fim de
algumas semanas de convalescença, Virgílio continuava a não ter condições para
voltar ao trabalho. Estava longe da fonte do seu calvário, mas parecia que o
seu drama cada dia se adensava mais. Por mais que a esposa suavizasse os
acontecimentos e o aconselhasse a não se enervar a única ideia que não lhe
saía da cabeça era a de acertar contas com o inquilino.
Um dia, cansado
da sua inatividade e aproveitando a tarde que convidava a um passeio à beira
mar, resolveu meter-se a caminho para tentar fugir ao abismo das suas
cogitações que não lhe davam sossego nem um momento. Por mais que tentasse, não
conseguia aceitar as regras legais que, na prática, pareciam favorecer mais os
prevaricadores e desonestos do que as pessoas que cumpriam com os seus deveres
de cidadania.
Ao fim de meia
hora em que percorreu, à toa, locais por onde não passava há muito e deu por si
junto à tasca do ti Luís. Depois de alguma hesitação, resolveu entrar e beber um
tinto na esperança de que o vinho lhe desse alguma tranquilidade de espírito.
Logo a seguir, encaminhou-se para o paredão que separava o leito do rio Mondego
da zona de praia onde vários pescadores, de pesca à linha, iam matando o tempo à
espera de um peixe que tardava em picar. Ali, escolheu um local desocupado,
sentou-se numa pedra voltado para a zona antiga da cidade, acendeu um cigarro e
ficou a contemplar o movimento, constante, das embarcações que entravam e saíam
do porto da Figueira da Foz. Perante aquele cenário que lhe era familiar,
deteve-se a saborear a aura amena que soprava de sul. Em poucos segundos,
perdeu-se num emaranhado de pensamentos nostálgicos do tempo em que também ele
regressava ao porto, ansioso por abraçar a esposa e com o navio a abarrotar de
peixe que era garantia de algum dinheiro na carteira. Como era feliz
nessa época! Era mais novo, tinha saúde de ferro e as preocupações não lhe
roubavam o sono.
A brisa de
norte que, a meio de cada tarde, costumava varrer toda a orla costeira e
antecipar a debandada dos banhistas que, naquela época do ano, enchiam as praias da
região, não se fez sentir nesse dia. Em função disso, o tempo foi passando
ligeiro e quando o velho Virgílio deu por si já o crepúsculo caía quente sobre
a maré baixa, inundando toda a área ribeirinha com um cheiro a maresia e a esgotos.
Com o entardecer, chegavam a terra firme nuvens densas de mosquitos, famintos, que não se cansavam de espetar o ferrão venenoso em qualquer transeunte. Embora
não se sentisse importunado por aquela praga invasora, acendeu mais um cigarro,
levantou-se e ao dar os primeiros passos quase esbarrou com o Albino, um antigo
companheiro da faina que já não via há muito tempo. Embora aquele fosse
bastante mais novo do que ele, estava a contas com o desemprego de longa
duração. Depois da decisão política de abate de grande parte da frota
pesqueira, nunca mais arranjara trabalho na pesca longínqua, ia sobrevivendo de
pequenos biscates sem qualquer regularidade nem vínculo laboral.
Mal os dois
homens se encararam, cumprimentaram-se efusivamente, trocaram algumas palavras
e partiram, a caminho da tasca do ti Luís, a pretexto de um brinde ao
reencontro.
Enquanto o
tinto, de origem alentejana, lhes ia escorregando pela garganta, Albino foi-se
inteirando da situação do velho Virgílio e ofereceu-se de imediato para o ajudar
a meter Macário na devida ordem. Até porque era uma pessoa com quem ele nunca
simpatizara. Assim, não esperaram por outra oportunidade. Logo que terminaram a
bebida, partiram ao encontro daquela criatura que não parava de infernizar a
vida ao pobre Virgílio.
Nessa noite,
Macário dava entrada no hospital com vários traumatismos. Ao ser questionado
pela polícia sobre o que lhe acontecera, esclareceu, simplesmente, que fora
vítima de uma queda.
Uma semana mais tarde, o velho Virgílio foi
surpreendido por uma carta, manuscrita e assinada pelo Macário, pondo fim ao
contrato de arrendamento e fazendo a entrega da chave da casa. No final, em
letra igualmente legível, um pedido de desculpas sobre as maroteiras que lhe
fizera.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
domingo, 15 de maio de 2016
sexta-feira, 6 de maio de 2016
A DEFORRA DA NATUREZA
O
Outono estava já a meio mas a temperatura mantinha-se alta, apoiada num Céu sem
nuvens, onde o Sol se mostrava inclemente, pouco disposto a oferecer tréguas. O
silêncio era total; nem ramos agitados pelo vento ou sequer uma ligeira brisa que
aliviasse a canícula. Com exceção da torga magoriça, de floração serôdia e
prolongada, o mato em redor exibia um tom áspero e chocalhante, implorando por
chuva.
Cansado,
com as forças a minguarem-se-lhe, transpirando abundantemente, Jacinto enveredou
por um carreiro de cabras que serpenteava as courelas do Vale da Carreira, para
regressar mais rapidamente à sua aldeia que distava dali cerca de dois
quilómetros. Ao ombro transportava uma arma de um só cano, com o cão erguido,
em posição de fogo. Pendurada no cinturão, uma perdiz balanceava como pêndulo
em relógio. À sua frente, uma cadela pouco interessada, igualmente despojada de
energias, língua de fora, farejava ao desfastio como se entendesse que a
jornada estava concluída. A Tita, perdigueira de raça épagneul-breton, olhava,
receosa, para os tojos que via à sua volta, cujos espinhos, quando se
aventurava por entre o mato, lhe picavam a pele, fazendo-a ganir, dorida. Que
delícia, – pensava ela – regressar à casa do dono para se refastelar no sofá
acolhedor, onde a mãe de Jacinto, atenta e prestável, como pajem em ambiente
real, era pródiga em mimos.
De
súbito, uma voz feminina fez-se ouvir pelo valeiro:
–
Jacinto! Jacinto!
Como
nada visse ao longo do caminho, olhou em redor até que se deteve numa figura de
mulher que se desenhava num plano inferior, entre o carreiro e o riacho.
–
Ah!... És tu, Deolinda?
–
É verdade! Quem esperavas que fosse? – disse
ela em voz alta.
–
Que fazes aí?
–
A roçar mato para o curral.
Sim
– pensou ele – ali seria o local próprio, pois o mato, próximo do ribeiro,
estava mais viçoso. Todavia deu consigo a pressentir uma armadilha (roçar mato
ao domingo não era tarefa habitual). Detestava ser apanhado naquela situação,
como qualquer láparo que, imprudentemente, vem aliviar-se à clareira, em pleno
dia, afastado da toca. Pelo que reatou a marcha sem mais delongas, dizendo
apenas:
–
Está bem!
–
Eh! Espera, quero falar contigo! – disse ela,
em voz rouca e imperativa.
–
Que queres?
– Quero saber o que se passa contigo! Já não te
vejo há dois meses. Francamente, não sabes o que fizeste?
Diabo!
As suspeitas de Jacinto confirmavam-se. É verdade que haviam namoriscado e que
a posse acontecera naturalmente, na palha do alpendre, tendo por testemunha uma
Lua que espreitava, divertida e cúmplice. Coisa sem grande importância. Aliás,
o ato em si revelara-se caricato, devido aos esforços que ela fizera para
mostrar uma virgindade que não existia. Se havia alguma coisa a discutir teria
que ser com outro, não com ele.
–
Afinal, o que queres de mim? – perguntou Jacinto,
com voz impaciente.
Então,
Deolinda foi-se aproximando, afastando o mato da sua frente com notada
impaciência e Jacinto sentiu-se mais tranquilo ao notar que ela deixara para
trás a enxada com que cortava o mato. Manejada com raiva e de supetão, poderia transformar-se
numa arma temível. Por isso baixou a guarda e também o cão da espingarda. Ela
chegou a arfar e só passado um momento pode dizer:
–
Que sejas responsável!
Erguendo
os olhos em direção ao firmamento, procurando juntar ideias dispersas, Jacinto
suspirou, resignado. Na limpidez do Céu, só um cirro se destacava, vindo de
Sul. Recordou-se da história antiga, da mula do papa, quando este, em tempos
conturbados, pontificava em Avignon, à beira do Ródano. A mula esperara sete
anos para se vingar do palafreneiro que a havia tratado mal. E o coice que lhe
aplicara fora de tal ordem que as águas do rio se agitaram inquietas. Estaria
também ele condenado a esse género de vendeta?
–
Não te forcei a nada! Tu até aceitaste a
situação com alvoroço, como se a desejasses há muito! – respondeu Jacinto.
–
Estás doido? Quero que vás domingo a minha
casa! – disse ela em tom áspero.
Nesse
momento, vindas do cimo do monte, várias perdizes, sete ou oito, asas
desembainhadas, sobrevoaram o mato, rasteiras, fazendo uma zoada caraterística.
Na portela, perto, curvaram para a direita e desapareceram. Algum caçador ou
simples caminhante as teria levantado. Jacinto fez uma careta. Aquelas flibusteiras,
como ele lhes chamava, eram suas conhecidas. Há dias que se entretinham a
negacear consigo, nunca permitindo que ele se aproximasse à distância de tiro.
–
No próximo não pode ser. Conta comigo na quinta-feira.
– respondeu ele, tentando suavizar o momento. Mas é claro que a sua intenção
seria outra. Sabia que o pai de Deolinda, conhecido como o Tio Bisarma, não se
ensaiava nada para varrer tudo à sua volta com a foice de cortar as silvas,
sobretudo se o bagaço lhe esquentasse a cabeça.
–
Falas a sério?
– Sim, conto ir... – respondeu Jacinto, que ao
mesmo tempo levou a mão ao cinto e desprendeu a perdiz do gancho, dizendo:
–
Leva esta perdiz e prepara-a para quinta-feira.
Ajudarei a comê-la.
–
É mesmo verdade?
–
Lá estarei. Agora vou ver se encontro as
perdizes que passaram aqui. Adeus!
De
faces pálidas, cabelos em desalinho, ainda desconfiada, Deolinda viu que ele se
afastava e durante um momento manteve-se atenta, sem desviar os olhos, até Jacinto,
se diluir na vegetação.
*
Dois
dias depois, Jacinto partiu para a conhecida urbe, à beira do Tejo, capital de
um império extinto, também conhecida em tempos longínquos como a grande cloaca,
onde não seria localizado com facilidade.
quarta-feira, 4 de maio de 2016
quinta-feira, 14 de abril de 2016
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