Quando me afoitei na torrente fluvial, Entraste em pânico e acudiste, Com a dádiva da amizade de animal, Que entre os homens já não existe.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
domingo, 15 de maio de 2016
sexta-feira, 6 de maio de 2016
A DEFORRA DA NATUREZA
O
Outono estava já a meio mas a temperatura mantinha-se alta, apoiada num Céu sem
nuvens, onde o Sol se mostrava inclemente, pouco disposto a oferecer tréguas. O
silêncio era total; nem ramos agitados pelo vento ou sequer uma ligeira brisa que
aliviasse a canícula. Com exceção da torga magoriça, de floração serôdia e
prolongada, o mato em redor exibia um tom áspero e chocalhante, implorando por
chuva.
Cansado,
com as forças a minguarem-se-lhe, transpirando abundantemente, Jacinto enveredou
por um carreiro de cabras que serpenteava as courelas do Vale da Carreira, para
regressar mais rapidamente à sua aldeia que distava dali cerca de dois
quilómetros. Ao ombro transportava uma arma de um só cano, com o cão erguido,
em posição de fogo. Pendurada no cinturão, uma perdiz balanceava como pêndulo
em relógio. À sua frente, uma cadela pouco interessada, igualmente despojada de
energias, língua de fora, farejava ao desfastio como se entendesse que a
jornada estava concluída. A Tita, perdigueira de raça épagneul-breton, olhava,
receosa, para os tojos que via à sua volta, cujos espinhos, quando se
aventurava por entre o mato, lhe picavam a pele, fazendo-a ganir, dorida. Que
delícia, – pensava ela – regressar à casa do dono para se refastelar no sofá
acolhedor, onde a mãe de Jacinto, atenta e prestável, como pajem em ambiente
real, era pródiga em mimos.
De
súbito, uma voz feminina fez-se ouvir pelo valeiro:
–
Jacinto! Jacinto!
Como
nada visse ao longo do caminho, olhou em redor até que se deteve numa figura de
mulher que se desenhava num plano inferior, entre o carreiro e o riacho.
–
Ah!... És tu, Deolinda?
–
É verdade! Quem esperavas que fosse? – disse
ela em voz alta.
–
Que fazes aí?
–
A roçar mato para o curral.
Sim
– pensou ele – ali seria o local próprio, pois o mato, próximo do ribeiro,
estava mais viçoso. Todavia deu consigo a pressentir uma armadilha (roçar mato
ao domingo não era tarefa habitual). Detestava ser apanhado naquela situação,
como qualquer láparo que, imprudentemente, vem aliviar-se à clareira, em pleno
dia, afastado da toca. Pelo que reatou a marcha sem mais delongas, dizendo
apenas:
–
Está bem!
–
Eh! Espera, quero falar contigo! – disse ela,
em voz rouca e imperativa.
–
Que queres?
– Quero saber o que se passa contigo! Já não te
vejo há dois meses. Francamente, não sabes o que fizeste?
Diabo!
As suspeitas de Jacinto confirmavam-se. É verdade que haviam namoriscado e que
a posse acontecera naturalmente, na palha do alpendre, tendo por testemunha uma
Lua que espreitava, divertida e cúmplice. Coisa sem grande importância. Aliás,
o ato em si revelara-se caricato, devido aos esforços que ela fizera para
mostrar uma virgindade que não existia. Se havia alguma coisa a discutir teria
que ser com outro, não com ele.
–
Afinal, o que queres de mim? – perguntou Jacinto,
com voz impaciente.
Então,
Deolinda foi-se aproximando, afastando o mato da sua frente com notada
impaciência e Jacinto sentiu-se mais tranquilo ao notar que ela deixara para
trás a enxada com que cortava o mato. Manejada com raiva e de supetão, poderia transformar-se
numa arma temível. Por isso baixou a guarda e também o cão da espingarda. Ela
chegou a arfar e só passado um momento pode dizer:
–
Que sejas responsável!
Erguendo
os olhos em direção ao firmamento, procurando juntar ideias dispersas, Jacinto
suspirou, resignado. Na limpidez do Céu, só um cirro se destacava, vindo de
Sul. Recordou-se da história antiga, da mula do papa, quando este, em tempos
conturbados, pontificava em Avignon, à beira do Ródano. A mula esperara sete
anos para se vingar do palafreneiro que a havia tratado mal. E o coice que lhe
aplicara fora de tal ordem que as águas do rio se agitaram inquietas. Estaria
também ele condenado a esse género de vendeta?
–
Não te forcei a nada! Tu até aceitaste a
situação com alvoroço, como se a desejasses há muito! – respondeu Jacinto.
–
Estás doido? Quero que vás domingo a minha
casa! – disse ela em tom áspero.
Nesse
momento, vindas do cimo do monte, várias perdizes, sete ou oito, asas
desembainhadas, sobrevoaram o mato, rasteiras, fazendo uma zoada caraterística.
Na portela, perto, curvaram para a direita e desapareceram. Algum caçador ou
simples caminhante as teria levantado. Jacinto fez uma careta. Aquelas flibusteiras,
como ele lhes chamava, eram suas conhecidas. Há dias que se entretinham a
negacear consigo, nunca permitindo que ele se aproximasse à distância de tiro.
–
No próximo não pode ser. Conta comigo na quinta-feira.
– respondeu ele, tentando suavizar o momento. Mas é claro que a sua intenção
seria outra. Sabia que o pai de Deolinda, conhecido como o Tio Bisarma, não se
ensaiava nada para varrer tudo à sua volta com a foice de cortar as silvas,
sobretudo se o bagaço lhe esquentasse a cabeça.
–
Falas a sério?
– Sim, conto ir... – respondeu Jacinto, que ao
mesmo tempo levou a mão ao cinto e desprendeu a perdiz do gancho, dizendo:
–
Leva esta perdiz e prepara-a para quinta-feira.
Ajudarei a comê-la.
–
É mesmo verdade?
–
Lá estarei. Agora vou ver se encontro as
perdizes que passaram aqui. Adeus!
De
faces pálidas, cabelos em desalinho, ainda desconfiada, Deolinda viu que ele se
afastava e durante um momento manteve-se atenta, sem desviar os olhos, até Jacinto,
se diluir na vegetação.
*
Dois
dias depois, Jacinto partiu para a conhecida urbe, à beira do Tejo, capital de
um império extinto, também conhecida em tempos longínquos como a grande cloaca,
onde não seria localizado com facilidade.
quarta-feira, 4 de maio de 2016
quinta-feira, 14 de abril de 2016
quarta-feira, 9 de março de 2016
sábado, 5 de março de 2016
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