sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

MISSÃO DE ALTO RISCO



Quando os primeiros raios de sol beijaram a colina onde estávamos aquartelados, deixámos Ninda rumo a Gago Coutinho, (atual Lumbala) sede do Comando da nossa Unidade. Antes de iniciar a marcha, esperámos por dois indígenas que nos haviam pedido boleia e logo que eles se acomodaram, com os sacos de tralha, a um canto da carroçaria, dei a ordem de arranque. Esperava-nos uma viagem de cerca de setenta quilómetros, em picada arenosa, onde os turras se recreavam a enterrar minas e a montar emboscadas. Tínhamos também pela frente várias pontes, para a travessia das linhas de água e pântanos das chanas, edificadas sobre estacaria em madeira que eram alvo frequente de sabotagem. Para além disso, o inimigo estava sempre à espreita para a qualquer momento nos atacar traiçoeiramente.
Naquela fase do ano, em pleno junho de 1973, os dias eram longos, mas a crueldade da picada, na maioria das vezes, tornava-os insuficientes para um regresso, ao aquartelamento, dentro do tempo previsto. A partir do crepúsculo até ao nascer do sol as nossas comunicações sofriam um forte empastelamento e não funcionavam. Assim, para além de não podermos evacuar feridos também não podíamos dispor de apoio de qualquer natureza. Em face disso, os movimentos operacionais ficavam limitados ao período diurno.  
Naquele dia, o meu pelotão fora incumbido de levar a cabo uma operação de reabastecimento logístico a partir do Comando da Unidade até à nossa posição. Como é sabido, uma tropa moralizada e eficiente carece de um bom apoio logístico, mas ali tudo era problemático. Assim, o reabastecimento auto, normalmente, era de periocidade quinzenal, em dias aleatórios para tentar fugir à rotina. Os chamados frescos, "congelados" carne e peixe, chegavam, quase sempre, por via aérea. O terreno era hostil e qualquer deslocação era sempre arriscada, pelo que era indispensável tomar todas as precauções e o pessoal ir equipado com todo o material disponível: G3, HK-21, morteiro 60`, granadas e alguns dilagramas. Contudo, como frequentemente acontecia, o alferes, comandante do pelotão, baldou-se mais uma vez e o comando recaiu no furriel mais antigo que por sinal era eu. Quando a situação se complicava aquele costumava contrair paludismo deixando, assim, o pelotão entregue aos subalternos.  
Logo que abandonámos a nossa fortaleza, cercada por arame farpado, constituída por meia dúzia de barracos revestidos a cal e alguns buracos na areia a que chamávamos abrigos, a angústia inundou o nosso espírito. Com a cabeça afogada de dúvidas, carregávamos silêncios. Não falávamos do tempo que faltava para terminar a comissão e regressar à terra mãe, nem dos mosquitos que, durante a noite, nos espetavam o ferrão venenoso e não nos deixavam descansar, nem das matacanhas que nos roíam os pés, nem da Flor do Congo que nos devorava as virilhas, nem tão pouco dos percevejos que, nas camaratas, nos sugavam o sangue. No meio do silêncio daquele abismo de incertezas, para além dos olhos bem escancarados tentando observar tudo o que rodeava, por vezes, sobrava um rumor de impaciência em jeito de desabafo, sobre a via-sacra em que estávamos mergulhados. Digeríamos com dificuldade as patranhices que, ao longo do tempo, nos iam sendo incutidas por quem nunca calcava areia minada. Enquanto nos deslocávamos de coração apertado esquecíamos as dores, de todo o tipo, que nos ensombravam a mente.
As viaturas, três berliets escolhidas de um parque em exaustão, sem manutenção especializada, roncavam em penosa aflição, picada fora, rasgando a areia que teimava em entupir o sulco rasgado pelos rodados dianteiros e assustando a bicharada que povoava a mata. Ao fim de uma hora, em que percorremos cerca de vinte quilómetros, surgiu o primeiro contratempo. A certa altura, ouvimos um enorme estrondo semelhante ao deflagrar de uma granada. Depois dos procedimentos de segurança habituais, em situações de contacto com o inimigo que era saltar das viaturas e procurar abrigo para ripostar ao ataque, concluímos que se tratara de um simples rebentamento de um pneu na berliet que ocupava a segunda posição na coluna e que ficou com a jante enterrada na areia. Estávamos junto à ponte sobre o rio Luati onde, de ambos os lados da picada, eram visíveis pedaços de chaparia de viaturas que, em passagens anteriores, não resistiram aos rebentamentos de minas anticarro. Era um local propício a novos confrontos com os turras, pelo que montámos o dispositivo de segurança que se impunha para evitar uma surpresa desagradável. Havia que tomar precauções redobradas enquanto substituíamos o pneu, que não foi tarefa fácil, apesar da intervenção do mecânico que nos acompanhava em todas as deslocações auto.
Entretanto, digo ao furriel Duarte, de alcunha “Cacimbado”, para se encarregar da inspeção aos paus de mogno que revestiam a ponte e nos permitiam a travessia do rio. Era um veterano, cansado da guerra, a contas com duas dezenas de castigos que o iam perpetuando na guerra. Embora, durante os quase cinco anos que já levava de comissão, por várias regiões de Angola, tivesse tido desempenhos dignos de louvor, para os superiores hierárquicos só as suas falhas mereciam destaque. Apesar desse currículo pouco invejável, a par do desgaste físico e psicológico, tentava, a todo o custo, preservar a sua integridade física e de todo o grupo de combate. Em situações de caráter operacional, todos aprendíamos com a sua experiência guerreira. Ali, de G3 empunhada e sem abandonar o charro que trazia ao canto da boca, chamou dois homens da sua secção e diluiu-se no capim que ocultava a estacaria que sustentava a ponte. Situação que se foi repetindo sempre que eramos confrontados com outros pontões.
Uma hora mais tarde, prosseguimos a marcha num cenário que alternava entre chanas com boa visibilidade e mata densa onde o sol, apenas, espreitava por entre as frondes de mogno e acácia, vegetação que nos ia servindo de máscara. Perto da hora de almoço, chegámos a Gago Coutinho sem que tivéssemos sido surpreendidos por qualquer ataque inimigo.
Carregámos o material logístico previamente requisitado: combustíveis, produtos alimentares e componentes de guerra. Logo a seguir, apressámo-nos a regressar a Ninda que se adivinhava mais difícil. Para além da distância que tínhamos que percorrer podiam surgir surpresas de todo o tipo. Até porque em missões de reabastecimento não podíamos contrariar as rotinas e o nosso regresso à Base já não era surpresa para o inimigo. Apesar disso, a viagem foi decorrendo sem que a sua proximidade tivesse sido notada.
Na continuação da nossa missão, quando nos aproximávamos do rio Luce, numa descida de forte inclinação, a última berliet ficou sem travões. O condutor para não embater na viatura que circulava à sua frente guinou para a chana abrindo uma clareira através do capim. Só parou quando as rodas da frente ficaram totalmente atoladas no lodo. Como se aquela contrariedade não bastasse, na linha do horizonte eram visíveis nuvens ameaçadoras que se formaram rapidamente e anunciavam tempestade eminente. Então, para resgatar a berliet daquele pântano, utilizámos outra viatura como reboque e ainda a força braçal dos trinta homens do pelotão. Com os pés enterrados na lama, todos tentávamos dar o máximo das nossas forças. Entretanto, enquanto nos ocupávamos da viatura, fomos atingidos por uma trovoada, com chuva diluviana, acompanhada de granizo. Os relâmpagos pareciam querer fulminar tudo ao nosso redor. Os trovões faziam tremer o chão lamacento que pisávamos. As nuvens pariam pedras como ovos de galinha-do-mato. Perante tal cenário e tentando contrariar a alucinação de tanta adversidade, o experiente "Cacimbado", gritou: “força pessoal! Chuva civil não molha militares!”, frase que nos deu força redobrada para enfrentar com denodo a tarefa em que estávamos empenhados.
A fim de uma hora, encharcados até à alma, retomámos a marcha, ainda, debaixo de chuva. Restavam apenas duas berliets a funcionar porque a terceira ia atrelada à do meio ligada por uma lança de ferro. A noite caiu e a viagem foi prosseguindo, agora com maior lentidão. A picada tinha muita areia e as viaturas carregadas tinham maior dificuldade em progredir. A certa altura, o condutor da berliet que circulava em primeiro lugar não conseguiu engrenar a tração às rodas da frente e ficámos parados sem possibilidade de continuar e expostos a todos os perigos. Perante mais aquele incidente, chamei o mecânico tentando equacionar uma solução. Aquele, embora fosse um homem voluntarioso que não olhava a sacrifícios, naquela noite, não respondeu à chamada. Estava abatido física e psicologicamente para cumprir a sua função. Partilhava a capa de oleado com outro militar, mas estava totalmente molhado, respondeu com dificuldade:
    Não saio daqui nem que me matem! Aqui, não posso fazer nada! É preciso desmontar a caixa de velocidades!
A chuva não abrandava. A noite ia avançando, fria e cruel, sem nos deixar alternativa. Não tínhamos comunicações e a viatura avariada estava atolada na areia a bloquear a passagem da única berliet que ainda podia circular com autonomia. Durante alguns minutos a chuva aumentou de intensidade, fustigando a escuridão com crueldade. Embriagados pela adversidade, alguns elementos refugiaram-se debaixo da blindagem das carroçarias. Quando a chuva abrandou, fiz nova tentativa junto do mecânico, mas obtive a mesma resposta impiedosa:
     Já lhe disse que, não saio daqui nem que me matem!
Então, resolvi utilizar outra tática numa tentativa para aliciar o precioso mecânico. Convidei-o para me ajudar a beber uma garrafa de whisky Old Parr, que tinha guardada no meu baú, logo que chegássemos ao aquartelamento. Aí a coisa mudou de figura.  Não respondeu de imediato, mas depois de alguns segundos de refleção, disse:
     Está bem! Vou ver o que posso fazer!
Sem mais comentários, deixou o local onde estava refugiado, muniu-se de ferramenta apropriada e avançou determinado. Pegou na gambiarra que o condutor, entretanto lhe havia preparado e rastejou por debaixo da cabine, besuntada de óleo queimado, em busca de uma solução. Com a farda colada ao corpo iniciou o trabalho que se lhe afigurava difícil. Enquanto mexia nos ferrolhos ia dando instruções ao condutor para, em conjunto, conseguirem engrenar uma velocidade. Depois de muitas tentativas, o mecânico gritou:
  Alto! Não mexas mais! Vamos experimentar assim! Temos que ir sempre em segunda! Se não aguentar, temos que ir sempre em primeira! Não toques mais na alavanca de velocidades!
Quando o mecânico saiu debaixo da berliet metia dó. Para além de molhado e a tremer de frio, parecia um negro totalmente pintado de óleo queimado. Mas, ainda assim, não se cansava de realçar os seus conhecimentos técnicos que foram determinantes para remediar a avaria.
Finalmente, retomámos a marcha, picada fora, em busca de algum aconchego. Já estávamos perto. Não seriam mais de seis quilómetros. Mas nada estava garantido. Assim, em velocidade de caracol, chegámos ao conforto do Destacamento por volta da uma hora da manhã. Quando me preparava para mudar a farda molhada, fui interpelado pelo Comandante que, em jeito de ameaça, me questionou sobre o motivo de tão grande demora. Depois de um relato muito sumário, virei-lhe as costas com indiferença. Estava sem paciência para aturar o seu militarismo doentio, próprio de quem se resguardava no aconchego do arame farpado, longe do sacrifício e da guerra. Até porque estava na hora de pagar a minha promessa.
Logo que o mecânico chegou ao bar, onde usufruímos da companhia experiente do Cacimbado, bebemos e brindámos os três até esgotar duas garrafas. 





sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O MOEDOR DOS SUBÚRBIOS


Naquele dia, Joaquim Melro, depois de bem almoçado, saiu à rua, acendeu um cigarro e partiu com a intenção de se dirigir ao local onde estacionara o carro. Porém, durante o percurso, deparou-se com o compadre Ricardo que estava sentado à porta da adega, saboreando a sombra da latada que envolvia o edifício, e como normalmente acontecia Joaquim parou para o cumprimentar. Ricardo levantou-se, estendeu-lhe a mão e depois da normal saudação disse em voz bem audível:
   Compadre! Ainda bem que aparece! Acabei de abrir uma pipa e estava precisamente à sua espera para provar a pinga!
A tarde estava quente, mas os dois sexagenários não precisavam de qualquer pretexto para refrescar a garganta com um copo de tinto. Mas aqui, Melro não anuiu prontamente ao convite como seria o normal a esperar. Cofiou o bigode, pensativo, como se fizesse uma análise ao seu historial de tintos e só depois disse:  
    Compadre!... Não me leve a mal, mas hoje almocei bem e bebi melhor! Acho que até já ultrapassei o meu limite! – ao mesmo tempo e enquanto falava ia-se aproximando da porta da adega.
   Deixe-se de filosofias, homem!... Venha daí e vamos provar o vinho! – teimou o Ricardo.
      Bem!... já que tanto insiste, vamos a isso! 
Assim que entraram na adega, Ricardo apressou-se a encher um copo e entregou-o ao Joaquim Melro que, de imediato, o levou à boca e foi sorvendo em pequenos goles como se de um enólogo se tratasse. No intervalo de cada gole, mascava como se analisasse os extratos do néctar. Enquanto ele saboreava o vinho, o compadre observava-o, atentamente, à espera de um parecer entendido e no final questionou:
       Então que tal?
  Este palheto é muito aveludado, mas hoje o meu paladar não está, suficientemente, apurado para analisar vinho. Talvez depois de beber mais um copito ou dois lhe possa dar uma opinião mais avalizada! 
       Não seja por isso, compadre! Caramba, a pipa está cheia!
 Pois!... Mas não posso abusar! Sabe que está na hora de travar os apressados e não vá a minha missão altruísta virar pesadelo…
Após a reforma, Melro descobriu um processo invulgar de ocupar o tempo. Como discordava da velocidade que o trânsito fluía na estrada nacional resolveu colocar em prática um método para tentar impor alguma moderação à circulação automóvel. Assim, passou a fazer o percurso várias vezes ao dia, no seu carro, a partir da povoação onde vivia, até à entrada da cidade e vice-versa, numa distância aproximada de quatro quilómetros. A marcha que utilizava era tão lenta que só muito raramente chegava aos trinta quilómetros hora, estimulando, deste modo, a paciência de muitos condutores. Mentalizou-se que, com a sua intervenção, para além do divertimento pessoal, prestava um bom serviço à comunidade local, servida por aquela via.
   Ah!... Então é por causa disso que o compadre Melro hoje está esquipático? Deixe essa tarefa às autoridades que é para isso que pagamos impostos! 
       Vossemecê fala bem! – fez uma pausa para acender um cigarro, libertou uma densa baforada e continuou: – Com os políticos não podemos contar que só se preocupam em tratar dos seus próprios interesses. A polícia raramente cá passa e ninguém quer saber da nossa segurança. Eu ainda nem sei para que servem os limites de velocidade de 50 Km/hora, quando eles passam aqui a mais de 100! Até estou admirado como é que aqui ainda não ocorreram acidentes. 
    Pois!... Mas tenha cuidado! Olhe que eu já ouvi comentários muito desfavoráveis à sua pessoa, sabe que aquilo a que chama missão altruísta perturba a vida a muita gente.
        Francamente, não me diga que também está do lado deles! Olhe que eu não esperava isso de si! 
     Oh Melro! Parece que me conhece há dois dias! Eu apenas o estou a aconselhar. Nunca se sabe quando aparece algum diabo capaz de lhe dar uma “cachaporrada”. Vontade parece que não lhes falta! Bom!... Deixemos isso e vamos beber mais um tinto que como este o compadre bebe pouco! 
    É melhor é! A conversa deu-me securas – disse Melro forçando um sorriso. Esperou que Ricardo enchesse os copos e de seguida bebeu o seu de um só trago e no final exclamou: – Parabéns compadre! Este merecia ser premiado com a medalha de ouro! 
        Se o Melro o diz! 
      É muito bom! Mas voltando ao assunto!... Ai daquele que me tente agredir que não perde pela demora. Era só o que faltava, proibirem-me de transitar na via pública as vezes que eu quiser!
  A discordância deles reside apenas na velocidade, muito lenta, que vossemecê imprime ao seu carro, que provoca a ira de alguns automobilistas. Sabe muito bem que, em mais de quatro quilómetros, é proibido ultrapassar! – disse Ricardo, enquanto voltava a encher os copos.
   Paciência! O meu carro, que agora apelidam de papa-reformas, não dá mais de 30 Km/hora, quem tiver pressa que se vá queixar ao construtor – interrompeu a fala para beber mais um tinto e no final, com visível ansiedade, acrescentou: – Até já, compadre Ricardo! Agora, vou dar a volta ao percurso e no regresso, se cá estiver, bebo mais um copo!  
Assim, já bem bebido, Joaquim Melro ocupou o lugar ao volante do seu carro e abalou deleitado para mais um dos seus passeios. Logo que entrou na estrada nacional, em direção à cidade, foi brindado por uma buzinadela de um transeunte já familiarizado com aquela habitual marcha lenta que o forçava a uma penitência cansativa. Mas as contestações não desalentavam Melro, antes pelo contrário, extravasava até um certo divertimento, face aos protestos evidenciados pelos condutores, através de gestos e graçolas.  
Logo que terminou a primeira parte da viagem, antes de inverter o sentido de marcha, decidiu parar para comprar tabaco. Despreocupado, estacionou o carro da forma que lhe pareceu mais cómoda e entrou no café. Quando se abeirava do balcão notou que, tinha bebido em excesso, estava a ficar tonto, sentou-se, pediu um café e ficou a aguardar que as suas faculdades lhe permitissem regressar a casa.
Meia hora mais tarde, sentiu-se melhor e resolveu retomar o seu itinerário. No entanto, quando chegou junto ao carro, verificou que este havia sido vandalizado. Tinha várias manchas de tinta escura por toda a estrutura que contrastavam nitidamente com a cor branca, original da viatura. Não se cansou de protestar a plenos polmões, mas como não obteve resposta ocupou o lugar ao volante sem se lembrar mais do motivo que o levara ali e partiu de tal modo perturbado que espevitou o carro até aos setenta quilómetros hora, que era a velocidade máxima que na realidade atingia. Contudo, a determinada altura, ao entrar numa curva, carregou no pedal do acelerador em vez de acionar o travão e entrou em despiste de encontro a uma barreira. Ainda assim, para além de danos materiais avultados, saiu fisicamente ileso. No entanto, quando abandonava o habitáculo, parou junto a si um carro da polícia.





sexta-feira, 14 de novembro de 2014

BUROCRACIA

“Quem não coopera com o sistema será, certamente, devorado por ele”. Esta frase que vem a propósito da burocracia que reina entre nós era, em tempos,  utilizada pelo meu avô quando este se via enredado na teia burocrática confusa do sistema administrativo da “res publica”, que não lhe permitia concretizar as obras que tinha em mente. Infelizmente esta parece continuar tão actual, como na época em que ele a proferia. Apesar das promessas dos sucessivos governos, tudo parece continuar na mesma.  
Como todos sabemos, a burocracia não é só o brasão da incompetência, como também a fonte de muitos vícios de que enferma a, pomposamente, chamada democracia. Para além de poder dar origem a atos de corrupção, ela serve, sobretudo, para dificultar a vida aos cidadãos e dar importância a quem na realidade a não tem. E mais, penso até que passaria publicamente despercebido quem cumprisse cabalmente as funções de que é incumbido… 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O TESOURO COBIÇADO




Naquela noite de novembro de 1920, Acácio Mineiro não fez serão à lareira como habitualmente, logo que terminou a ceia decidiu ir para a cama. Estava muito cansado. Passara o dia a  podar a vinha e como se esse trabalho já não fosse suficientemente cansativo o tempo, chuva miudinha ininterrupta, também não ajudara. Em função dessa labuta, assim que chegou à cama adormeceu, mas estava longe de imaginar o que a noite lhe reservava. 
Uma hora mais tarde, acordou estonteado, ao som do matraquear das ferraduras de uma qualquer cavalgadura que se aproximava pela viela que dava acesso à sua casa. A esposa, como habitualmente, dormia que nem uma pedra. Tinha a doença do sono, dificilmente acordava a menos que a casa lhe caísse em cima. No entanto, pelo contrário, ele dava conta de qualquer ruído, fruto dos seus dias de guerra e da intranquilidade que lá vivera que o forçara a um alerta permanente na luta pela sobrevivência. Para além dessa vigilância constante, a sua casa, edificada em pedra de xisto, ficava paredes-meias com a via pública e isolada do resto do casario, cerca de duzentos metros, o que, por si só, facilitava a perceção de qualquer movimento, mas ao mesmo tempo, tornava a habitação mais vulnerável a um qualquer assalto. 
Não era normal a passagem de quadrúpedes pela aldeia àquela hora tardia, muito menos por uma ruela estreita que, apenas, dava acesso às propriedades agrícolas. Em face disso, Acácio ficou confuso, sem saber muito bem onde se encontrava, como se despertasse de mais um dos seus, frequentes, pesadelos. Começou por fazer conjeturas sobre o que teria acontecido, mas como não encontrou explicação lógica, ajeitou a almofada, aconchegou as mantas e mudou diversas vezes de posição, à espera que o sono lhe sossegasse a mente. Porém, quando estava quase a adormecer, o silêncio voltou a ser interrompido. O matraquear atormentador das ferraduras sobre a rua em macadame voltou a ouvir-se em passada muito pausada. De passada em passada acabaria por se imobilizar junto ao seu casebre.
Agora estava acordado, tinha a certeza de que não se tratava de um pesadelo. Era mesmo real! Quem seria àquela hora da noite? Assaltantes? Uma força policial no encalce de algum criminoso? Algum viajante perdido em busca de auxílio? Sem resposta para as suas conjeturas, saltou da cama como que impulsionado por uma mola, mas enquanto aguardava que lhe batessem à porta e se identificassem, muitos pensamentos lhe passaram pela ideia. Enquanto esperava que a situação evoluísse manteve-se imóvel.
Entretanto, vieram-lhe à memória histórias de arrepiar que ouvira sobre as invasões francesas. Nessa época, as tropas de Napoleão vandalizavam casas e celeiros, dia e noite, saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Aos aldeões não restava outra solução que não fosse fugir ou pactuar com os invasores na esperança de que nada de pior lhes acontecesse.
Tentando conter a respiração e com a mente mergulhada nesses pensamentos aterrorizantes tateou o canhangulo, de carregar pela boca, que tinha junto à cama. Armou o cão e ficou de tocaia à espera que um qualquer vândalo lhe entrasse pela casa dentro. Estava convicto que o primeiro a invadir a sua intimidade seria abatido à queima-roupa. Depois logo veria, mas como não teria tempo para recarregar a espingarda resolveria a questão à cacetada. Aguentou alguns segundos na escuridão do seu pequeno espaço, sem que a situação evoluísse. Por fim, ouviu um murmúrio confuso de vozes que se misturavam com o chapinhar das pingos de chuva que caíam dos beirados, prenúncio de que algo de inesperado estaria para acontecer. Um arrepio percorreu-lhe a espinha que o impulsionou a antecipar-se aos acontecimentos. Abeirou-se, silenciosamente, do postigo que dava para a viela, conteve a respiração e abriu cautelosamente o caixilho. Meteu o cano da arma de fora e disparou para o vazio. O clarão, acompanhado de um estrondo aterrador, rasgou inesperadamente a escuridão e, ato contínuo, gerou movimentos inesperados que culminaram numa retirada em galope desenfreado. Logo a seguir, acendeu a candeia de azeite e recarregou apressadamente a espingarda, na expectativa do que pudesse surgir. Apesar da sua cautela não viria a se incomodado o resto da noite.
Acácio Mineiro tinha regressado, há cerca de dois anos, da Primeira Grande Guerra onde combatera na região da Flandres. À semelhança de muitos companheiros havia sido integrado no Corpo Expedicionário, sem estar minimamente preparado para a guerra. Na realidade, para além de teorias avulsas e de prática de ordem unida, tinha apenas no seu curriculum uma dúzia de disparos com a espingarda Mauser, efetuados em carreira de tiro. Em função disso e das condições deploráveis que ali encontrara, enterrado nas trincheiras, com água pelos joelhos e exposto aos gases utilizados tanto pelas forças inimigas, como até pelas amigas, acabaria por adoecer alguns meses depois. Contudo, só regressaria a Portugal após o Armistício, onde viria a chegar num estado lastimável, magro e doente, ao ponto de a família ter dificuldade em o reconhecer. Agora parecia curado das lesões físicas, mas os traumas das etapas vividas ainda estavam latentes.
A par das agruras que lá passara, parece que ainda teria tido um pequeno rasgo de sorte. Constava-se que, durante um combate, enquanto se abrigava nos escombros de um edifício parcialmente destruído pela guerra, teria encontrado uma caixa com cinquenta libras em ouro. Só mais tarde, depois de regressar a casa, viria a denunciar a posse do seu pequeno tesouro, trocando algumas libras por moeda corrente. Com o passar do tempo, a história do tesouro foi tomando forma e espalhou-se pelos negociadores de ouro, desencadeando a cobiça dos amigos do alheio que, devido àquele tempo difícil, estavam mais ávidos do que nunca. Foi preciso aquele susto para que Acácio Mineiro tomasse consciência disso e ficasse mais acautelado.

domingo, 14 de setembro de 2014

OUSADIA DE FINALISTA



Na véspera do dia da queima das fitas, como habitualmente, as ruas de Coimbra fervilhavam de gente. Muitos eram forasteiros que embora oriundos de outras regiões, galvanizados pelo ambiente estudantil, deixavam-se facilmente enamorar pelas tradições académicas. Com o aproximar da hora, alguns estudantes ocupavam-se dos últimos preparativos para o desfile das academias; outros, deambulavam pela cidade em ritual boémio e excessos de toda a ordem, como que anunciando o culminar da sua etapa estudantil. Entre esses, encontravam-se dois finalistas de direito, o Barnabé e o Esteves, acompanhados das respetivas namoradas, que com a hora do jantar a avizinhar-se decidiram petiscar.
Corria a década de setenta do século passado, num tempo em que o dinheiro não abundava nos bolsos de muitos cidadãos e para os estudantes a situação não fugia à regra, atendendo a que dependiam da mesada dos pais que por sinal bastante forretas, fruto das dificuldades que aquele tempo teimava em oferecer-lhes. Ora, os dois estudantes mesmo sabendo que não tinham dinheiro sentaram-se à mesa numa esplanada de uma tasca, preparados para comer e beber do melhor que a casa tinha para oferecer. Então, aproveitando a confusão gerada pela elevada afluência, resolveram impressionar as raparigas como se fossem homens endinheirados. Consultaram a ementa e depois de uma escolha bastante ponderada decidiram-se por uma caçoila de chanfana para os quatro. Esperaram pacientemente pelo empregado que, nesse dia, não tinha parança e encomendaram o pitéu. Ao mesmo tempo, solicitaram também as entradas e uma garrafa de vinho tinto alentejano, com o comentário de que aquele prato requeria uma pinga de qualidade.  
O dia fora movimentado e a barriga estava a reivindicar aconchego. Mas na presença das raparigas argumentavam que, na hora da despedida, queriam aferir a qualidade da confeção daquela iguaria regional, sobejamente elogiada por muitos apreciadores.
Enquanto aguardavam que o jantar lhes fosse servido, iam petiscando em amena cavaqueira, numa postura alegre e descontraída, longe de qualquer preocupação com o pagamento. Precisavam de impressionar os tasqueiros pela positiva que, normalmente eram muito experientes e detetavam os caloteiros até pelo olhar.
Logo que o empregado os serviu entregaram-se ao prazer de cada garfada com a voracidade de quem há muito não comia uma tal iguaria. Contudo, à medida que a caçoila ia ficando vazia, nos bastidores do espírito dos dois doutores apenas existia uma preocupação, como iam sair da encruzilhada em que se haviam metido. Mas depois do primeiro combate terminar, dedicaram-se à sobremesa com o mesmo apetite do prato principal.
No final, depois de bem saciados, estudaram, rapidamente, a melhor forma de se livrar da despesa que haviam contraído. Assim, logo que o empregado se ocupou de outros clientes, o Esteves acompanhado das raparigas deixou o aconchego da mesa que ocupavam em busca de um refúgio previamente acordado entre os dois homens. Mal o terreno ficou livre, Barnabé, o mais ousado, levantou o braço em direção ao empregado e solicitou a conta. Cheio de boa-fé, o pobre homem baixou a guarda e encaminhou-se para a caixa registadora instalada no interior do estabelecimento e quando regressou, num abrir e fechar de olhos, encontrou a mesa vazia. Correu inquieto tentando localizar os jovens doutores, mas não lhe voltaria a por a vista em cima que, entretanto, se diluíram na multidão.
Dias mais tarde, quando Barnabé se deslocava na alta coimbrã, deu de caras com o tasqueiro da caçoila de chanfana que de imediato lhe barrou a passagem, dizendo:
─       Com que então enchemos a barriguinha à custa aqui do Gilberto, não é!?
─       Ah… Ah… Ah…
─       Não aceito desculpas! Chegou a hora da cobrança, meu caro doutor! Ou pagas, ou faço sinal ao polícia! – concluiu Gilberto.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A ÚLTIMA PESCARIA


Quando nos deslocávamos de automóvel, com destino ao porto de Peniche, fomos informados de que o mar estava bastante agitado e de que não haveria, certamente, condições para a nossa habitual pescaria. Pelo teor da informação, concluímos que o nosso passeio quinzenal, rumo às ilhas Berlengas e Farilhões, estava em vias de não se concretizar. Mas, apesar disso, continuámos a viagem na esperança de que a ondulação, entretanto, amainasse e de que o barco pudesse deixar a barra. Que diabo, depois de uma noite perdida e uma viagem tão longa, com o pensamento nos cardumes que habitavam aquelas paragens, também merecíamos melhor sorte! Contudo, já não era a primeira vez que ficávamos em terra. Noutras ocasiões, fomos também surpreendidos por contrariedades semelhantes.
Naquela madrugada de setembro, chegámos ao cais por volta das cinco horas. Fazia algum vento e o céu estava estrelado. A maré estava na vazante e, aparentemente, a agitação marítima, dentro do porto, parecia normal. Por aquilo que nos era dado analisar nada parecia indiciar algo de anormal, mas os responsáveis pela embarcação eram experientes marinheiros e tinham outra opinião.
Depois de quase uma hora de espera e argumentação insistente com o mestre da embarcação, acabámos por colocar todo o material logístico a bordo. E, enquanto se procedia ao sorteio dos pesqueiros, reforçámos a dose de comprimidos anti enjoo para a eventualidade das coisas se complicarem. O sorteio tinha como objetivo evitar disputas pelos considerados melhores lugares, atendendo a que os doze pesqueiros disponíveis na embarcação tinham características de comodidade diferentes. No entanto, tudo dependia das correntes marítimas. Assim, logo que cada um ocupou a posição que lhe calhou em sorte, o navio desamarrou dando início à viagem. 
 Quando deixámos a barra, o dia ainda não estava totalmente claro, mas a ondulação começava a mostrar as suas garras. Contudo, logo que avançámos mar dentro, o vento aumentou e a ondulação tornou-se mais violenta. Só nesse momento, reconhecemos as agruras que nos estavam reservadas nesse dia. À medida que o barco sulcava as ondas, o convés ia sendo invadido por constantes enxurradas, que nos forçaram a procurar refúgio no espaço exíguo da cabina de pilotagem. Entretanto, com a turbulência a aumentar, começaram a surgir indisposições e alguns companheiros desceram a escadaria para se acomodarem no porão nos aposentos reservados aos tripulantes. Um sinal de desistência perante a adversidade, como era frequente ouvir dos mais resistentes, atendendo a que, como era costume, quem se acomodava no porão só de lá saía quando o navio atracava. Pelo meu lado, lá fui resistindo como pude, junto ao piloto partilhando o compartimento com os outros pescadores, onde nem sequer tínhamos espaço para mudar os pés.
Ao fim de quase uma hora de viagem, ainda sem terra à vista, a sonda indicou a presença de um cardume e de imediato soou a ordem para lançar a âncora para se dar início à pescaria. Em dias de ondulação normal, numa situação idêntica, não havia mãos a medir para iscar e tirar peixe. Agora, assim que a embarcação fundeou, tudo se alterou para pior. Os pescadores, eu incluído, não resistiram ao baloiçar constante, em todas as direções. Os movimentos eram de tal forma violentos e descoordenados que não havia modo de apaziguar a revolta rapidamente instalada no estômago de cada um. Lembrava uma interminável incontinência de bêbedos. A todo aquele transtorno orgânico, nem sequer escaparam os dois elementos da tripulação. Perante um cenário tão sombrio, questionei os companheiros se não teria havido engano nos comprimidos anti enjoo, mas nenhum deles me soube responder. Então, lembrei-me de um velho amigo, que me acompanhou noutras jornadas de pesca no porto da Figueira da Foz, que antes de deixar a barra, tomava sempre um cálice de vinho generoso, vulgarmente chamado de vinho do Porto, alegando ser o melhor antídoto contra a indisposição. Coincidência ou talvez não, ele nunca enjoava e regressava ao porto, sempre de semblante risonho, independentemente da agitação que se fizesse sentir.
Agora, o mais novato naquelas andanças implorou desesperado que o levassem para terra firme. Mas tal não viria a acontecer por falta de unanimidade na decisão. Uns alegavam que não era fácil encontrar cardumes como aquele e que logo que o navio estabilizasse a situação melhorava. Outros aconselhavam-no a que olhasse apenas em direção ao infinito e que assim iria facilmente ultrapassar o enjoo.
De facto, era indescritível a sensação de fragilidade e impotência que sentíamos perante a natureza adversa com que nos confrontávamos. Estávamos perdidos algures no meio do oceano dentro de uma casca de noz que adornava para todos os lados e rodeados de ondas impiedosas que, a cada momento, ameaçavam engolir a embarcação. Durante cerca de uma hora em que permanecemos naquele calvário dançante não consegui sequer preparar o material para dar início à pesca. Fiquei de tal forma perturbado que a minha luta se limitava a tentar controlar a indisposição que teimava em não me abandonar. Depois de cada vómito, ia ingerindo mais uma golada da minha reserva de água mineral tentando evitar que as entranhas me saíssem pela boca. Quando esgotei as duas garrafas de litro e meio, fui forçado a recorrer ao vinho que levava para acompanhar o almoço. O mais novato mergulhou também no porão de onde só viria a sair à noite aquando do nosso regresso ao porto de Peniche. Apesar de todos os meus contratempos, ainda presenciei o comportamento de alguns resistentes que, após cada lançamento faziam uma pausa para vomitar e, logo a seguir içavam para bordo o peixe que entretanto picara. Cenas quase inacreditáveis, que se foram repetindo ao longo daquela manhã atribulada.
Logo que o piloto concluiu que a situação estava a piorar, mandou içar a âncora e rumámos às Berlengas em busca da tão desejada terra firme. Assim que o navio atracou cada um procurou acomodar-se de modo a tentar recuperar-se do desgaste sofrido. Quem parecia não estar pelos ajustes eram as gaivotas que, em voos rasantes e ameaçadores, nos queriam impedir de descansar sobre as rochas nuas.
Depois de duas horas de descanso e de um pequeno lanche, para tentar estabilizar o organismo, a ondulação acalmou ligeiramente e acabámos por voltar ao baloiço no mar. A viagem foi curta. O navio acabaria por fundear perto do Forte de S. João Batista onde, abrigados do vento, pescámos exemplares de várias espécies e ali nos mantivemos até perto do fim do dia.
Por volta das dezoito horas, regressamos ao porto sem que nada de mais grave nos tivesse acontecido. O mais novato, que entretanto deixou as catacumbas do navio, não parecia o mesmo homem. Vinha completamente desfigurado. Lembrava um infeliz que acabara de deixar as masmorras da tortura. Quando chegou junto dos companheiros, apenas pronunciou a sua intenção de não repetir a experiência. Também para mim foi um dia complicado. Depois de pisar terra firme, o meu corpo parecia baloiçar, como se continuasse em alto mar.   

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA ROTA DO OCASO


Naquele dia, Tiago notava uma estranha sensação de vazio que não sabia se era de alívio ou de perda. Era um misto de sentimentos que teimavam em não lhe dar alento: se por um lado atingia o culminar da sua carreira onde dera muito do seu melhor, por outro, sentia uma enorme frustração de ausência que raiava a saudade. Continuava imbuído das suas funções, mas parecia que tudo à sua volta deixava de lhe fazer sentido. Até por parte dos camaradas de trabalho já era notório um certo distanciamento que rapidamente se traduziria em esquecimento. Para trás iam ficando, tanto de dia como de noite, jornadas intermináveis, enfrentando, tanto o bom tempo como a intempérie, à mistura com agruras e riscos de toda a ordem, sem lugar a contestações de qualquer tipo.
Assim, no culminar de tudo isso, logo que terminasse o dia iria passar à situação de reforma. Uma mudança brusca que lhe traria, certamente, muitas alterações no seu quotidiano. Embora o passado lhe deixasse marcas indeléveis para o resto dos seus dias, dado que era impossível apagar da mente uma vida de plena entrega, teria de se ir adaptando com resiliência à liberdade limitada de que passaria a usufruir. Sim, porque ninguém é verdadeiramente livre se tiver condicionamentos de qualquer natureza. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para além da liberdade de pensamento, como pode um idoso com limitações e dependências de todo o género ser verdadeiramente livre? Completamente impossível!
Durante a sua vida de trabalho utilizara todos os meios ao seu dispor para levar a nau a bom porto e saborear a maravilhosa sensação do dever cumprido. Afinal, magra consolação, atendendo ao elevado investimento físico e psicológico, para tão pobre compensação. Na realidade, não foi fácil percorrer um caminho onde a tão anunciada realização pessoal nunca chegara a acontecer. Um sonho utópico condenado definitivamente ao insucesso à medida que o tempo se ia escoando. E agora, tudo isso e muito mais já fazia parte de um passado distante que, naquele momento, não lhe parecia ter deixado saudade.
Após o término do seu último dia de serviço sentou-se ao volante do carro com a intenção de regressar a casa. Mas, nesse preciso instante, chegou-lhe o eco do afável tagarelar dos camaradas que assistiam, pela televisão, ao jogo inaugural do campeonato do mundo de futebol no Brasil e acabaria por manter o motor desligado. Ficou indeciso, como que dominado por uma força superior que o impedia de partir. Acendeu um cigarro e após a primeira baforada recostou-se no banco, procurando arranjar coragem para virar as costas a uma vivência que se prolongara por trinta e seis anos. Num abrir e fechar de olhos, perdeu-se no emaranhado dos seus pensamentos vasculhando na poeira do tempo um interminável desfilar de reminiscências que, agora, pareciam traduzir-se numa enorme sensação de alívio. Entre muitas, vieram-lhe à memória alguns episódios do seu tempo de combatente em África onde perdera mais de dois anos da sua juventude em prol de uma ideologia que não servira a ninguém. Não passavam de recordações daquela guerra estúpida onde, devido à incerteza quotidiana, vivera intensamente cada pedaço de vida.
Começou por recordar o dia em que foi parar aos calabouços de uma prisão sem que, em sua opinião, tivesse cometido qualquer ato censurável. Apanhou por tabela, só porque se empanturrara de cerveja e assistia, imperturbável, a uma contenda entre alguns elementos das forças militares amigas cujo resultado se resumiu a pouco mais do que uma montra partida. No entanto, a confusão durou até à chegada da polícia militar que procedeu à detenção de todos os elementos presentes, embora trajassem civilmente. Aqui, contou com a colaboração da DGS que, como era habitual, proliferava por todos os locais de concentração de público onde controlava todos os movimentos. Uma mancha na sua carreira militar que, apesar da distância temporal, teimava em o assaltar em cada momento. Uma detenção que durara dois longos dias e apenas visara castrar o espirito libertino de um jovem cansado dos já quase doze meses de guerra.
No explanar dos seus pensamentos lembrou-se do Soba Paulino, um indígena que, para além da sua função administrativa, participava nos rituais de natureza tribal e assistia ao passar lento dos dias em paz com o mundo. Na companhia da Laurinda, sua esposa, passava as tardes a descansar à porta da palhota em notada melancolia enquanto ela de olhar carente exibia o rosto onde tinha vários desenhos esculpidos e que revelavam parte da sua história de vida, como se, através deles, quisesse reforçar a sua posição de líder feminino da tribo.
Recordou também a Teresa lavadeira que, devido à sua forma extrovertida, não se enquadrava no estilo da mulher local. Tinha outros horizontes e sonhava com lugares mais desenvolvidos do mundo moderno. Embrulhada na sua capulana matizada de cores garridas, não tinha parança. A par do trabalho na lavra, lavava, remendava e passava a ferro, muito do fardamento crestado pelo sol, a troco de magro pagamento.
E, ainda, o Macário, um indígena frio e de coração vazio que, habitualmente, era requisitado como guia pisteiro nas deslocações operacionais. Tinha pertencido aos rebeldes, mas, vá-se lá a saber a troco de quê, mais tarde aliou-se à tropa portuguesa. Conhecia o terreno como as suas mãos. Tanto em área mais aberta, como desbravando trilhos através da floresta densa. Nunca perdia o sentido de orientação e ao mesmo tempo, decifrava qualquer vestígio com a perspicácia própria de um verdadeiro batedor.
Depois da guerra nunca mais tivera notícias deles.
Paralelamente a toda essa vivência, recordou, ainda, algumas situações dramáticas. Entre elas, sobressaía a imagem do Miguel, um soldado que há muito fazia planos para depois do seu regresso a casa. Sonhos que buscavam um futuro melhor. Queria emigrar para a Alemanha onde tinha alguns familiares. Lamentavelmente, esse projeto de vida nunca se chegaria a concretizar. A tragédia aguardava-o debaixo do chão arenoso que pisavam. De facto, num dia fatídico, o jovem seguia normalmente pela picada integrado numa missão de patrulhamento e a determinada altura ao apoiar o pé no chão acionou uma mina dissimulada em pleno trilho. No mesmo instante, voou pulverizado pela explosão caindo destroçado sobre a cratera do rebentamento. Uma visão aterradora, provocada por uma armadilha criminosa, concebida para estropiar os homens e capaz de abater psicologicamente todo um batalhão. Uma crueldade de uma desumanidade sem paralelo, que deixou o ar impregnado de nitroglicerina, a par do terror e da dor.
Agora, logo que o som da palavra golo ecoou, Tiago despertou das intermináveis recordações da sua juventude militar, lançou um olhar contemplador sobre o parque que lhe era familiar e partiu a caminho do ocaso.
Como ansiara por aquele momento! Quantas vezes dera consigo a contar os meses e dias que lhe faltavam para concluir a sua etapa e o dia chegou, quase, sem que ele tivesse dado por isso. Algum tempo antes, chegara mesmo a pensar organizar uma festa de despedida, mas o tempo fora passando sem que, entretanto, tivesse tomado qualquer decisão sobre o assunto. Agora, era demasiado tarde para pensar nisso, entrara na situação de reforma e não parecia assim tão entusiasmado como imaginara que acontecesse. Todavia, reconhecia ser a melhor solução. A saturação era grande. A exigência aumentava de dia para dia. O aumento constante da incivilidade com que se deparava diariamente tornara-se-lhe numa penosa agonia. Entretanto, com o passar do tempo, perdera algumas capacidades. Na realidade estava a ficar demasiado cansado para continuar a lidar de perto com irreverência. De uma coisa tinha a certeza, iria, certamente, acordar muitas vezes a pensar que estava na hora de se apresentar ao trabalho, mas para isso encontrava facilmente solução.
Com o afastamento do serviço, longe do stress, só esperava viver o resto dos seus dias com a tranquilidade que não tivera ao longo de toda a sua vida profissional. Queria, sobretudo, acompanhar de perto o crescimento dos netos que, por imperativo de serviço, o não fizera com os filhos, facto que fora, sem dúvida, a sua maior lacuna na abrangência familiar.
Paralelamente à sua nova etapa, teria que tentar viver com todos os momentos que marcaram a sua vida de trabalho: as boas recordações iria guardá-las para sempre no arquivo da sua memória; as mágoas iria apaga-las o mais rápido que lhe fosse possível, mas acreditava que o tempo seria o seu melhor aliado.